terça-feira, 2 de novembro de 2021

Refúgio da saudade




 

Narciso visitava a «casa da mãe» amiúde. Era ali que semeava saudades e revivia memórias já bastante desbotadas. 

Era nesse cantinho de emoções que passava parte dos seus dias, pois, ali pressentia a vida num lampejo e relembrava tempos que julgou sempre intermináveis.

O destino empurrou-o, ainda menino, para a vivência de uma manhã submersa que lhe moldaria as asas do sonho. Só na juventude tardia é que o lar materno serviu de aconchego.

Do tempo de moleque restavam histórias dispersas e escassos momentos marcantes. Tinha deixado a aldeia, com tenra idade, por vários anos, sentindo-se, a partir daí, um estranho na terra que o viu nascer. O único apelo que sempre o acompanhava era o conforto dos afetos de sua mãe.

Porém, a vida tem destas coisas: de tantos herdeiros daquele torrão materno, haveria de ser o Narciso a adquirir aquela que tinha sido a zona de conforto de toda a vida dos seus progenitores.

No momento decisório veio-lhe à memória emocionada a insistência de sua mãe para que mantivesse aquele lar no seio da família.

Depois de umas obras de melhoramento, Narciso começou a dedicar mais tempo àquela moradia, deleitando-se com a paisagem de assombro que dali se avista, com o pomar que plantou e com a pequena horta onde sua companheira de vida se dedicava à modesta produção de frutos vermelhos e hortaliças comuns.

Ocasionalmente, Narciso arrebatava-se nesse refúgio de saudade. E, não raras vezes, pelo entardecer soalheiro dos dias longos, levitava por sobre a paisagem iluminada da Veiga, até à cidade grande, ouvindo os sons notívagos e divagando pelo tempo que tinha ficado lá atrás.

Era assim que se sentia mais perto do rosto terno e sereno que sempre lhe acalmou a alma nos tempos de maior inquietação. 

Tal como escreveu Clarice Lispector, «A saudade é a prova de que o passado valeu a pena».

CG



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