domingo, 28 de dezembro de 2014

Ausência




«Por muito tempo achei que a ausência é falta. 
E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. 
Não há falta na ausência. 
A ausência é um estar em mim. 
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.»
                                                                                                                                                          Carlos Drummond de Andrade

 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Nómadas do nosso tempo!




O céu está forrado de roupagem cinzento-escura. Não existe vento a incomodar a natureza e a longa estrada de água que se exibe à minha frente torna este cenário sublime. 
O horizonte está mais iluminado, colorindo as nuvens de acromia amarelecida com espaços coralinos miscigenados de um suave azul celeste. De quando em vez, um barco de recreio aventura-se rio acima acordando as águas do remanso em que se encontram. Um cavalheiro surge ao fundo, encabeçado por uma touca vermelha de lista branca na base, numa alusão à noite natalícia que lentamente se aproxima.

Há momentos, chegou uma autocaravana francesa que se instalou neste cantinho de Esposende para aqui passar a noite. São os nómadas do nosso tempo que, com casa sobre rodas, viajam pelo mundo, quase sempre, na busca de sol e mar.
Não por acaso, iniciei a leitura do livro de Miguel Sousa Tavares «Não se encontra o que se procura», oferta de natal dos meus afectos do coração - o Carlos Eduardo e a Ana Alexandra - que me transporta para esta forma de liberdade de olhar o mundo.
Das escassas páginas lidas, retenho este pequeno trecho, verdadeira síntese da filosofia de um autocaravanista: “Se pudesse ter uma vida paralela, gostaria de ter a vida de um caracol, carregando comigo a casa e plantando-a onde houvesse sol e silêncio, onde houvesse mar e espaço, onde houvesse tempo e distância”.
Este é também um dos meus maiores prazeres: viajar com a casa sobre rodas, dando qualidade de vida ao tempo que me resta viver. Viajar na aventura, sem rumo nem tempo, na convicção de que mais do que o destino, importa a viagem.

Neste momento, apercebo-me de que o entardecer emerge, precoce e lentamente, embalado por um horizonte escarlate por entre um silêncio que nem o esvoaçar das gaivotas importuna.
Adoro este lusco-fusco da tarde quando, diante de mim, se deslumbra um espelho de água onde se avistam dispersas colunas de luz de fogo trazidas pelos lampiões da marginal. Amo presenciar a cumplicidade dos parcos transeuntes que, aos pares, caminham apressados no passadiço de madeira que corre ao lado do Cávado. O próprio ruído do trânsito, que circula na estrada mais recuada, parece irmanar-se à natureza calma deste início de noite de paz. Daqui a nada, regresso à casa onde as obreiras da gastronomia natalícia preparam o jantar mais esperado do ano. É este ritual pagão que junta os afectos num convívio que se deseja animado e feliz. Oxalá!

sábado, 20 de dezembro de 2014

A casa da mãe!





 
Num silêncio envolto em saudade, tenho visitado, nos últimos tempos, a casa que foi o berço onde nasci, o canto de afectos partilhados e onde encontrava a mãe sempre de gesto meigo e acolhedor.
Logo que chegávamos, manifestava preocupação com pormenores que acrescessem aconchego à nossa presença. Por exemplo, na época do frio, fazia questão de atiçar um pouco mais o fogão, acrescentando-lhe lenha para que o ambiente exibisse maior conforto. Depois, seguia-se um convívio feito de diálogos, quase sempre repletos de memórias vivas do passado da família e que, fatalmente, desaguavam nos afectos que tinham precocemente partido. 
Era nesse espólio de memórias que o tio Hilário e o tio Armindo emergiam como figuras de cartaz das lembranças de saudade. Tinham sido os irmãos mais queridos com quem partilhara uma vida feita de sacrifícios, penúria económica, incertezas e inquietações, aqui e ali, salpicada com intervalos de felicidade fraterna.
A mãe revelava tanta preocupação pelo bem-estar dos filhos que, por vezes, roçava a obsessão. Mas era o seu jeito protector e de desvelo, sempre vigilante, para que os seus rebentos fruíssem de uma vida feliz.
Até que chegou a sua vez de partir. A dor da sua ausência acantonou-se no quotidiano dos afectos mais próximos e que agora partilham uma saudade feita de desgosto e de mágoa. Mas permanece a memória de um sorriso sempre embrulhado em ternura e numa suave inquietação que só sossegava quando conferia que a vida dos seus filhos seguia o curso normal. Subsiste, também, a casa que habitava que, ao longo dos anos, transformou num aprazível ponto de encontro e num refúgio de maternal afeição.
A nossa mãe era o cimento que agregava as contradições que emergiam na variedade de temperamentos da sua prole. Era o mar onde desaguava o turbilhão de alegrias e tristezas, de insucessos e conquistas ou de derrotas e vitórias de toda a sua familia. Dela obtinha-se sempre uma palavra de incentivo, de apoio, de solidariedade e de ternura. Nunca de admoestação.
Hoje, a casa da mãe está vazia. Já lá não mora a rainha de afectos e a conselheira de todos os momentos. Quando lá entro, comove-me a solidão da cadeira onde sempre a encontrava. O próprio fogão parece estranhar o ambiente gélido a que não estava habituado. Perturba-me não ouvir a sua voz meiga a relembrar as histórias, mais alegres ou soturnas, que a sua longa vida partilhou. E o arrebatamento, misto de orgulho e ternura, quando falava da sua neta mais presente, a Ana Maria. Torturo-me por já não lhe poder responder que o Carlitos e a Joaninha são netos felizes e que muito a admiram. E por já não lhe ouvir as novidades dos meus irmãos de França.

E invade-me uma imensa tristeza por já não lhe perceber a ternura, forrada em desejo, que colocava no desabafo, tantas vezes repetido: «- a Leonor deve estar a chegar!».
Uma das preocupações que comigo partilhou foi sobre o destino da casa onde sempre vivera, evidenciando o desejo que a mesma não fosse alienada. Esse seu anseio será concretizado, pois, a casa não será negligenciada ou abandonada. Continuará a ser um ponto de encontro e um repositório de emoções. Ali nos reuniremos num abraço fraterno e na partilha de afectos dos que mais contam nas nossas vidas. Continuará a ser a casa da mãe!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Companheiro de eleição!






Este rio é de águas cristalinas e serpenteia sem esforço até à foz. 
Âncora, de seu nome, a doce transparência do veio de água dá a conhecer o deslumbre das tainhas ou negrões que saltam efusivamente reflectindo ao sol a parte do seu dorso mais prateado.
Ladeando o rio até perto da foz, estende-se uma espécie de capim ou de campo de trigo doirado, emprestando-lhe um bucolismo que impressiona.
Um passeio pela ponte, já meio vandalizada por forasteiros do alheio, embrenha-nos para uma quase ilha verde que se percorre por cimo da levada de madeira. 

Mas este curso é interrompido bruscamente por uma falésia de areia donde se avista, à esquerda, a curvatura do Âncora.
À direita é o largo mar que se desfaz em resmungada espuma.
Em vez de percorrer a praia, decido subir o morro para tomar um outro passadiço, sobranceiro ao oceano, que vai desaguar no parque de estacionamento da praia da Gelfa. 
Apeteceu-me correr, na liberdade da brisa fresca da manhã, sorvendo os odores da flora que, pela abundância e ausência de uso, começa a invadir a estreita estrada de madeira.
Vejo-me por entre uma multiplicidade de cores, desde o azul do mar e o céu pontilhado de pequenas nuvens brancas, ao verde forte dos arbustos que ladeiam o passadiço. 
E aí, o meu pensamento voa em liberdade por marcantes memórias recentes da minha vida.

A Tonicha preferiu permanecer na margem do Âncora, não só, a apreciar o bailado das tainhas nas águas transparentes, mas também, acordando memórias do tempo de infância dos nossos afectos, quando por cá veraneávamos, por uma boa quinzena, e povoávamos este paradisíaco local.
É neste remanso que leio a poesia de Miguel Torga, escritor que me acompanha há bastante tempo numa luminosidade literária que me deslumbra. Tem sido um companheiro de eleição!