sábado, 19 de novembro de 2016

Escrever até ser dia!



CG

Escrever pelo fim da tarde
Denunciar silêncios e vozes
Escrever até que a saudade
Convoque angústias velozes

Escrever afectos ausentes
Nos caminhos por percorrer
Escrever remansos carentes
Do lusco-fusco ao entardecer

Escrever como que a gritar
Embalado pela voz do Cohen
Escrever trovas com o olhar
E os enigmas que mais doem

Escrever nas águas do mar
As farsas que andam por aí
Escrever e não mais parar
Surfar a seiva em que nascí

Escrever à memória tardia
Sem pesar o que a gente diz
Escrever, enfim, até ser dia
Semeando ventos pela raiz


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Evocar emoções!

 Fazia muito frio quando chegamos a Saint-Flour, vindos de Clermont-Ferrand. Aí estávamos, pela primeira vez, a admirar aquela bela cidade de França, debruçada sobre um promontório vulcânico, junto do maciço central francês.
CG
À chegada, fomos seduzidos pela cidade baixa. Mas, rapidamente, a curiosidade levou-nos a subir os íngremes percursos que levam à cidade alta para apreciar o extraordinário centro histórico, o passado fortificado de Saint-Flour e o seu rico património, destacando-se a possante Catedral de São Pedro rodeada de belas casas renascentistas e palácios do século XVI. 
Fomos, também, atraídos pela admiração da paisagem do planalto, pelo palpitar das ruas e suas gentes e pela arquitectura medieval de uma urbe de inusitada beleza.
Durante a subida, vislumbrei o teu rosto ofegante do esforço e encrespado pelo vento gélido. Quase lá no alto, umas espaçadas pingas de chuva aumentavam o pressentimento de que íamos ter borrasca. De repente, tivemos de nos encostar sob a cobertura de um velho prédio que fazia esquina com uma minúscula praça triangular.
A chuva aumentava a cada instante e o forte vento empurrava-a em todos os sentidos. 
Connosco, outras criaturas abrigavam-se e estendiam o olhar para o céu cinzento como que a implorar uma trégua naquele dilúvio.
Trocamos olhares cúmplices sobre o que fazer: se esperar a bonança que sempre se segue à tempestade ou descer apressadamente os cerca de mil metros que distavam do nosso abrigo.
Com o passar do tempo e como a imagem soturna do céu se mantinha, decidimos pela segunda opção. Assim, ao esforço da subida fomos recuperar algumas forças e corremos, rua abaixo, por entre uma carga d’água que não parava de cair.
Ver-te chegar toda molhada, veio-me à memória aquele fim de tarde orvalheira na nossa cidade, quando ainda iniciávamos as doçuras do encantamento, da conquista e do compromisso. Lembro bem aquela correria, de mãos dadas, pela avenida abaixo, até ao Palacete do Raio. Exibias os teus longos cabelos, inundados de água da chuva, linda de juventude e de confiança no futuro.
Confirmo-te, passadas que estão algumas décadas, que aquele banho foi um bálsamo que amei vivenciar. A ponto de ficar, para sempre, gravado nas minhas melhores memórias. Ainda não esqueci o rosto franzino e muito belo e recordo com paixão os teus beijos quentes de primavera florida. A única diferença é que a chuva desta altaneira cidade é fria por demais. Talvez porque navegamos já o outono da nossa existência. Mesmo assim, adoro evocar emoções de tempos felizes!


domingo, 13 de novembro de 2016

sábado, 5 de novembro de 2016

Pousio do silêncio

«Aprendi que os imbecis estão mais perto de nós do que nós pensamos»
(Pedro Boucherie Mendes)


De repente, quase sem dar por nada, ei-lo, para ali, lambendo as mágoas de um tempo inquietante, por demais. Quem diria que, em idade madura, toda uma vida densamente mourejada se desfizesse ao vento por entre uma turba sequiosa de renovados sabores e tramas.
Joana
Percebeu, em experiência sofrida, que a vida é uma viagem sempre condicionada pelos encontros ou desencontros. 
E que, à hora menos esperada pela razão, surgem devaneios sórdidos a desassossegar os critérios em que sempre nos confiamos.
Nesses momentos, socorremo-nos de energias residuais para não nos desviarmos do rumo desde sempre traçado.
Constato que cedo incorporou a vertigem sentida pela intriga infame que lhe mereceu sentimentos de menosprezo. Mas sei que aprendeu com os seus «maiores» que, mais do que anatematizar certa direcção de afectos, o melhor é compreendê-la na sua circunstância e contexto psicossocial. Daí que, apesar de tudo, prefira relativizar o modo e a circunstância, navegando pela bela história de amor que esteve na origem do seu advento. 
Há muito que deixou de se ralar com questões filosóficas do tipo de donde vimos e para onde vamos. Porque é já distante o tempo do reacondicionamento dos afectos. Escasseia o fôlego e a coragem para o redesenhar dos sentidos.
Confirmo que a defesa da dignidade da sua alma gémea continua a ser o motor que sempre norteou as suas opções de vida. Mesmo para lá do tempo que ele percebeu definitivo. Pois, para ele, o longo pousio do silêncio permanecerá inerte «forever and ever».
Quanto ao demais, mormente sobre as aleivosias trazidas por ventos desabridos, recolhe-se no que, um dia, escreveu Miguel Torga, «Não há como o tempo para tornar relativos os juízos absolutos».