quinta-feira, 30 de junho de 2011

Instantâneos …


  


     Nesta tarde iluminada
     pelo sol quente do estio,
     vejo a vida matizada
     de cores e de frescura,
     e sinto-me como um navio
     navegando à aventura.

     Nas barbas de um pincel
     incito a vida a pintar
     misturando o manto verde
     com aquele azul de mar!


     Tenho prazer em olhar
     a gente que vai e vem,
     fazendo-se acompanhar
     da raça que o vento tem.

     Ao estender o olhar,
     sinto as mesmas rotinas
     e o rumor da poluição
     a entrar pelas narinas
     perscrutando a confusão
     nestas horas vespertinas!


                                Carlos da Gama
                                              Fotos: Google Imagens

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Aqueles que me têm muito amor

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.


E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca

O mais belo nascer do sol …

O regresso à metrópole estava previsto para as 23.00 horas no aeroporto de Bissau. Mas, a meio da tarde desse dia, eram já muitos os militares a dirigirem-se para o local de embarque. A ânsia da partida manifestava-se por um imenso desassossego, visível nos constantes olhares para o relógio, nas contínuas espreitadelas às pistas e na postura inquieta dos corpos.
Foram 12 meses passados no mato, sob uma enorme pressão psicológica. Lembro bem, em Buruntuma, só me sentia mais calmo e seguro pela calada da noite, pois eram raros os ataques da guerrilha local nesse período de tempo.
Estávamos em meados do mês de Setembro de 1974. A revolução de Abril tinha constituído, para os militares que lutavam nas três frentes de guerra em África, um farol de esperança a iluminar os caminhos do futuro. Com a queda do regime político português, dissiparam-se as dúvidas sobre o final daquele conflito colonial. Pelo que o pensamento fixou-se, a partir daí, no regresso a casa.
Há hora marcada, fomos informados que o avião, vindo, propositadamente, de Lisboa, ainda estava a caminho. Só pelas três horas da madrugada levantamos voo para uma viagem que me proporcionou o mais belo espectáculo que assisti, até hoje, nas alturas do firmamento: um magnifico nascer do sol, com raios multicolores, mistura de vermelho vivo com um amarelo rebelde. Na admiração daquele magnifico quadro, senti que uma nova era se iniciava na minha vida. Para trás, deixava um tempo que pretendia esquecer rapidamente.
Todos sabíamos, pelas notícias que nos chegavam de camaradas regressados de férias, que Portugal estava em vertiginosa mudança social e politica. E foi no preciso momento em que desembarquei, no aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa, que dei conta dessa enorme mudança que o meu país sofreu no tão curto espaço de um ano.
O primeiro sinal dessa mudança foi trazido, no cais de desembarque, por um vendedor de jornais que, junto de mim, apregoava: - «Compre a merda. Leve a merda para casa!». Um pouco incrédulo, fixei-me, por momentos, no ardina e nos jornais que carregava. Constatei, surpreso, que um dos deles tinha esse título tão pouco ortodoxo e impensável há um ano atrás.
A minha perplexidade era do tamanho da diferença de liberdade politica e social com o país que tinha deixado: rural, fechado sob si próprio, amargurado pelo destino dos embarcados para o ultramar, pobre e abandonado pelos mais jovens num fluxo emigratório sem precedentes. Tudo isso estava em mudança vertiginosa. 

A liberdade trazida pela «Revolução dos Cravos» estava a dar frutos a nível do desenvolvimento social e político e, um pouco mais tardiamente, a nível da economia e finanças.  
O jornal «A Merda» mais não era que um apêndice dos excessos que o exercício da liberdade sempre comporta. Sobretudo, após uma asfixia tenebrosa de 40 anos de ditadura! 

Mas, de tudo isto, retenho, na minha melhor memória, o mais belo nascer do sol!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

terça-feira, 28 de junho de 2011

The Power of Words

Silêncio …

Sinto a comoção ao rubro quando uma melodia atinge-me o coração, aprisiona-me a alma e inspira-me intensamente. Quando uma cantiga tem o condão de me fazer sonhar, de imaginar outros contextos e de sentir outras vertigens, … fico com uma gratificante sensação de tranquilidade.
Depois, … bem, depois, segue-se um sem número de audições até que permaneça a vontade de a saborear durante muito, muito tempo!

A balada de Maria Guinot – «Silêncio e tanta gente» –, levada ao festival da Eurovisão no ano, já longínquo, de 1984, faz parte das melodias que não me canso, jamais, de ouvir. A letra cativa e inquieta. A música enche-me de nostalgia e saudade.
Nostalgia, porque ela contém uma sonoridade melódica que arrepia a alma. E a voz de Guinot empresta-lhe uma suave harmonia à mensagem. Depois, a estrofe «E troco a minha vida por um dia de ilusão» é um fantástico hino ao amor e à primazia da ternura no contexto da vida de cada um de nós.
Estou em crer que Maria Guinot quis solidarizar-se com o grande escritor português, Raul Brandão, que, magistralmente, deixou escrito: «compreendi que a nossa vida é, principalmente, a vida dos outros... Melhor: compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada!».

Para além disso, considero o «Silêncio e tanta gente» uma ode ao silêncio, tão necessário nos tempos que correm. É no silêncio que conseguimos sentir a alma e olhar mais longe a razão da nossa existência. É no silêncio que percebemos melhor o sentido da vida e perscrutamos, com maior nitidez, os horizontes que ambicionamos alcançar.
O silêncio é a minha praia favorita. E é lá que também «descubro as palavras por dizer» com um prazer que me preenche a vida.
Pode ser um silêncio acompanhado pelo resmungar do mar, quando enfrento o vento para o encarar de frente. Pode ser um silêncio feito de som e espuma das águas revoltas que castigam o espraiado onde o mar teimosamente se extingue.
Pode ser um silêncio com horizontes de cores tardias que se revelam para melhor se compreender a lonjura do que se quer mais perto. Pode ser um silêncio feito de maresia, onde se respira a saudade e se enchem os pulmões de outros ventos e marés. Pode ser um silêncio …

«Silêncio e tanta gente», da Maria Guinot, tem o condão de me levar para estádios de alma em que me esforço, em vão, por compreender os destinos desta existência tão breve. Mas é também uma cantiga prenhe de esperança que me enternece e faz sonhar.
São raras as mensagens musicais que nos transportam sonho, luz e magia. E quando uma balada desperta o sonho, como esta da Maria Guinot, ela atinge, em pleno, o objectivo mais nobre de uma cantiga. Pois, somos resultado de um sonho e percorremos a vida perseguindo vários sonhos. Tal como escreveu António Gedeão: «o sonho comanda a vida». Quando assim não for, a vida deixa de ter sentido, não sendo mais preciso o silêncio!

Carlos da Gama
                                      Foto: Google Imagens

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Devaneios …






Sonho que ando perdido,
sinto a alma em confusão
e em alerta permanente!
Sabes que corro apressado
ao encontro da ilusão
que habita o sol poente!


Esta contínua procura
do sabor da malvasia
com mistura de jasmim!
Só pode ser de ternura
que nunca é em demasia
quando te encostas a mim!


Ao despertar os sentidos
teu sorriso emerge em flor
e teu corpo em aventura!
Libertas os sonhos retidos
em nossas juras de amor
num momento que perdura!


Estas palavras que escrevo
com afectos de saudade
não são meros galanteios!
São como as folhas do trevo,
estão cá por necessidade
não são, sequer, devaneios!

Carlos da Gama
                                      Foto: Google Imagens

domingo, 26 de junho de 2011

Fidelidade canina ...

Micha
O ultimato tinha sido dado. Tínhamos 48 horas para abandonar Buruntuma. Desde que ocorreu a revolução dos cravos no meu país, no dia 25 de Abril desse ano de 1974, que deixamos de patrulhar o território que estava sob a jurisdição da companhia sediada naquele aquartelamento.
Já há alguns meses que iniciamos a confraternização com os guerrilheiros do PAIGC, na perspectiva de que a guerra chegara ao fim.
No entanto, a politica em Lisboa estava mergulhada no caos do PREC – processo revolucionário em curso –, com fugas de capitalistas e de capitais para fora do país e a rua tomada por militares e populares que reivindicavam o tão propalado «caminho para o socialismo».
O ultimato era determinado e ameaçador. Se as tropas portuguesas não retirassem da região de Buruntuma aquele aquartelamento seria alvo de um ataque de artilharia em grande escala. Houve que, de imediato, transmitir essa ameaça aos altos representantes do governo português, em Bissau. E a resposta não se fez esperar: não seria permitido o abandono de Buruntuma e, a acontecer, seria considerado como uma deserção e julgada como tal.
Lembro bem que todos ficamos perplexos e meio perdidos entre a pressão inflexível do PAIGC e a negativa recebida do Governador do Território da Guiné-Bissau. Sabíamos que a guerrilha não estava brincar.
Eu próprio, tive a oportunidade de confirmar a progressão que o PAIGC tinha efectuado por dentro do território de administração portuguesa. Souberam aproveitar o baixar de braços do exército português, pela expectativa do fim das hostilidades que a revolução dos cravos tinha gerado, criando postos avançados bem disfarçados até às proximidades do aquartelamento português.
Sentíamo-nos, literalmente, entre a espada e a parede. Entretanto, a população foi sensibilizada pelo PAIGC a abandonar rapidamente aquela aldeia e a se refugiar nas matas vizinhas, uma vez que estava em marcha a preparação de um fortíssimo ataque, se as tropas portuguesas permanecessem por ali.
Através das transmissões militares, os aquartelamentos vizinhos foram informados da situação grave em que nos encontrávamos. E, mesmo contra as ordens da hierarquia, foram muitos os soldados que se prontificaram a prestar-nos auxílio e a conduzir as «Berliets Tramagal» até Buruntuma para nos retirar daquele inferno.
Tivemos, também, a generosidade do próprio PAIGC, que foi ao ponto de nos garantir plena segurança, no caso de pretendermos abandonar Buruntuma pelo lado da Guiné Conakry e, inclusivamente, fretar um avião que nos conduziria a Portugal.
Perante este cenário, de que estávamos dispostos a aceitar, os representantes do governo português deslocaram-se a Buruntuma na tarde que antecedeu o limite de tempo do ultimato, autorizando que abandonássemos aquela região e recuássemos para o aquartelamento de Piche, zona onde tínhamos passado os primeiros quatro meses de Guiné.
O que me impressionou, naquele momento, foi viver, na madrugada do abandono, algumas situações que constituíram, para mim, uma grande lição de vida.
Kiko
A primeira, foi assistir à manifestação hostil da população que, até ao momento, nos mimava de uma forma demasiado submissa, o que representou um choque no orgulho já ferido pela derrota na guerra.
Uma outra situação, foi olhar para aquele imenso «comboio» de Berliets de aquartelamentos vizinhos que, soube depois, os seus condutores passaram toda a noite em claro para irem em socorro dos que estavam «em maus lençóis».
Uma fraternidade que me comoveu intensamente.

Mas, a cena que mais me deixou aturdido e magoado, foi ver os nossos cães de guarda, que nos tinham servido com uma fidelidade «canina», a correrem atrás dos camiões, que nos levavam de Buruntuma, num esforço levado à exaustão.
Confesso que essa cena enterneceu-me até às lágrimas porque, todos sabíamos, muitos de nós deviam a vida à audácia que aqueles animais demonstravam em combate, quer no alertar para a aproximação do inimigo, quer na sentinela aos abrigos nas noites quentes daquelas paragens.
Foram, sem dúvida, os melhores vigilantes nocturnos e os verdadeiros defensores dos militares portugueses em Buruntuma.
Esta cena acordou-me para a cobardia imensa do ser humano que, com demasiada facilidade, despreza aqueles que lhe dedicam a vida. Infelizmente!
E para confirmar a tese de que não existe maior fidelidade que a canina!

                                         Fotos: Joaninha

sábado, 25 de junho de 2011

Quando sopra o vento norte

Um dia destes, dei de caras com este livro na exposição de uma grande superfície comercial. De imediato, o título despertou-me a atenção. Talvez porque me transporta para contextos de sonho e magia. Vento e norte são, para mim, palavras vestidas de um misto de aventura e nostalgia.
De relance, desfolhei um sem número de páginas e busquei as emoções que o título fazia adivinhar estarem por ali. Trata-se de uma história de amor vivida praticamente através de e-mail e que foi atingindo uma forte intensidade emocional como se fosse vivida ao vivo e a cores.
O tema é um sinal dos tempos e só poderia ter nascido nesta era de vertigem a nível das tecnologias de comunicação e informação e da natural imposição destas no quotidiano dos cidadãos.
Ou seja, sendo de uma leitura agradável, a história, divertida e cativante, é quase banal nos tempos que correm mas uma impressionante inovação há pouco mais de dez anos atrás.
Ainda há uns meses assisti a um filme (com Tom Hanks e Meg Ryan), de idêntica roupagem, com o título «Mensagem para Você». Conta o romance de dois rivais no mundo dos negócios que se apaixonam, via internet, sem qualquer um deles saber da identidade do outro.
Mas, será possível que a paixão floresça apenas pelo contacto virtual? Sem dúvida. As palavras têm o condão de despertar a imaginação que, por sua vez, gera fantasias cheias de ilusão e sexualidade e que, não raras vezes, transformam-se em amor por parte de ambos os intervenientes.
É inquestionável que a informática proporciona-nos um fantástico mundo novo, que influencia fortemente o desenvolvimento de todas as actividades humanas.
E que permite ao homem poder sonhar com um futuro de grandes descobertas no campo científico e tecnológico que, em muito, poderá contribuir para a melhoria da sua qualidade de vida. Nomeadamente, a nível da vivência dos afectos e do despertar dos sentidos.
A troca de afectos por via electrónica, por exemplo, é já hoje tão facilitada e intensa como as cartas de amor do passado ainda recente. Com a vantagem da velocidade de comunicação possibilitar a recepção de mensagens no instante seguinte à sua redacção.

Quem se estende um pouco pelas redes sociais, que a internet tem de sobra, para além de contactos descomprometidos e de carácter mais lúdico e científico, outros existem mais orientados para a partilha de afectos, confirmando-se a tese de que é enorme a solidão que campeia na grande maioria dos casamentos «bem sucedidos».
Não era necessário que a internet me confirmasse este fenómeno.
Já o acesso da mulher ao mundo do trabalho, para além da independência desta, da revolução nos costumes e na gestão familiar, permitiu, de igual modo, uma relação quotidiana mais próxima com o sexo oposto e o consequente emergir de relações extraconjugais em grande escala. Fenómeno que a internet veio ampliar.
Num espaço virtual, no conforto do sigilo das chaves de segurança, que só o próprio tem acesso, tudo se torna mais facilitado: desde as simples e desinteressadas conversas, aos assuntos mais ousados e de maior intimidade.
É aí que muitos lavam a alma e denunciam, com maior ou menor interesse, e com mais ou menos verdade, uma vivência familiar de ausência de afectos e de rotinas castradoras de uma relação activa e sadia a nível da sexualidade. Daí à marcação de encontros fortuitos, em locais de mútuo segredo e propícios à libertação dos sentidos, vai um passo!
É inquestionável que a internet revolucionou a forma de comunicação entre as pessoas. E transformou-se num meio profilático de comportamentos, mais afoitos à solidão, por permitir que muitos consigam relacionar-se e despertar emoções que julgavam adormecidas.
E isto é importante que aconteça. Porque, como muito bem escreveu o escritor Raul Brandão, «A que se reduz, afinal, a vida? A um momento de ternura e nada mais. O resto esvai-se como o fumo!».


Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Liberdade ...

«I want to break free», é uma das fantásticas músicas que constituem a mística dos Queen e que, neste momento, ouço com prazer. E uns pensamentos repentinos misturam-se nesta emoção que a melodia faz despertar. Sobretudo, quanto à fragilidade que o conceito de liberdade encerra: que liberdade temos ou julgamos ter. O que é isso de ser livre, afinal?
É livre o homem que todos os dias acorda ao som do despertador, agastado por ter de cumprir a rotina casa-trabalho-casa que lhe tolhe a vida? É livre o que não dispõe dos meios imprescindíveis à sua sobrevivência?
São livres os progenitores que lutam, ingloriamente, pela recuperação do filho perdido nos perigosos emaranhados das dependências? É livre o desesperado que só consegue afogar no álcool as mágoas que lhe dilaceram a alma?
É livre o eclesiástico que, só por ter optado pela vocação religiosa, se vê obrigado a reprimir as naturais emoções e desejos carnais?
É livre o Sumo Pontífice que, sem o desejar, se vê eleito representante da cristandade e, como responsável máximo pela defesa do catolicismo, se obrigue a uma atroz rotina de santidade?
Que liberdade a daquele que, pela manhã, se distende pelas estradas para cumprir as rotinas que o sufocam e lhe comprimem a alma e, ao final do dia, regressar ao alvéolo de cimento suburbano, tal como as esforçadas abelhas na sua colmeia. E, no dia seguinte, retomar o mesmo desvario.
Que liberdade a da mulher que se vê forçada a tolerar as investidas de um companheiro, bruto de comportamento e despido de qualquer ternura de intimidade? Este pensamento traz-me à memória, tantas vezes, aquela cena, magistralmente executada na telenovela brasileira «Pantanal», em que um velho marido, mal disposto por natureza e desconhecedor do mundo de afectos, se dirige à sua jovem esposa, determinando-lhe: «Vá-se lavã que quero usá ocê!».
Ainda hoje sinto arrepios de repulsa e calafrio quando esta cena desperta na minha memória. Porque ela é o símbolo da enorme solidão que povoa demasiados casais em pretensa intimidade. E é, também, um sinal de que a liberdade tem ainda muito caminho pela frente.
Por tudo isto, eu tenho fundadas dúvidas que a liberdade seja possível existir em nós. Ela só seria possível na medida em que fosse um mero estado de espírito. Tenho, para mim, que só seremos livres quando nos decidirmos isolar de tudo e de todos. Mesmo aí permanecem dúvidas se conseguiríamos ser livres do nosso próprio destino.
Ao nascermos num contexto social com regras, a nossa vida fica condicionada ao seu cumprimento, sob pena de sofrermos as consequências de eventuais desvios. Daí que a verdadeira liberdade seja praticamente inalcançável. Por isso, mais do que compreender o grito de libertação da canção dos Queen: «I want to breack free», eu prefira encher os pulmões com o simples: «I want to be free»!
Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

quinta-feira, 23 de junho de 2011

No cais de Alcântara …


Alcântara estava ensolarada naquele longínquo dia 13 de Setembro do ano de 1973.
Lisboa corria apressada pelas ruas e tinha-se enchido de gente da província que viera para uma última despedida dos jovens soldados que, pela tarde, embarcariam no Niassa, rumo à Guiné.
A grande maioria vinha do Alentejo já que o Batalhão de Cavalaria 8323/73 tinha-se constituído e formado em Estremoz. Apenas uns poucos, como eu, eram do norte do país.
Tudo, para mim, era novidade nos meus vinte anos. Não fazia a mínima ideia que final me estava destinado naquele filme de que era um protagonista forçado. Nenhum familiar eu tinha no cais do desespero e da saudade. Para além da penúria da deslocação a Lisboa, num tempo em que não existiam auto-estradas, eu assim preferi. Já imaginava que a melancolia seria ampliada pelas emoções da despedida para um destino todo feito de incertezas.
Ao meio da tarde, embarquei na companhia dos cerca de 500 homens, de várias toneladas de equipamento e armamento militar e de umas largas dezenas de caixões destinados a dar abrigo aos corpos daqueles que por lá deixassem a vida.
Quando as amarras libertaram o navio do cais, Lisboa ouviu o rumor crescente do choro da multidão que, numa constante agitação, se despedia com acenos ansiosos, com desejos de boa-sorte, com olhares fixos, com palavras de revolta e de um desespero impotente. Um cenário melodramático que atingia em cheio o coração dos embarcados.
Lembro que me recolhi a um canto do navio, de frente para o cais, assistindo, atónito, àquelas emoções libertadas com intensa comoção. Ao meu lado, vi soldados em pranto convulso enquanto as suas mãos se dirigiam para o local donde partiam lamentos lancinantes e se mostravam lenços brancos agitados com melancólica ternura.
Vi alguns, mais desesperados, a desfalecer, quer devido às fortes emoções, quer ao excesso de álcool de que tinham abusado. Daí o cheiro pestilento dos bafos etílicos misturados com vómitos imundos espalhados pelo chão.
Durante a alongada espera do soltar das amarras, ainda em pleno Tejo, perpassou pela minha alma a proibida letra de uma melodia do cantor de intervenção, Adriano Correia de Oliveira: «Tejo que levas as águas, correndo de par em par, lava a cidade de mágoas, leva as mágoas para o mar!».
Aquela despedida deixou-me em grande sobressalto e despertou em mim algumas questões para as quais não conseguia encontrar respostas. Sobretudo, a razão porque os homens e mulheres do meu país, apenas ali, no cais de Alcântara, reagiam à dor de ver partir os seus filhos para incertas paragens de sangue, suor e lágrimas.
Mas foi lá longe que, para além da lógica da guerra, lidei com uma realidade económica e social que jamais julguei existir e que me impressionou profundamente. A Guiné era, e continua a ser, um território sem cor, sem alma, sem economia, sem organização social, sem horizontes, sem liberdade, sem vida … sem quase nada!
Na sua história, teve, apenas, um líder, por quem nutro uma grande admiração, que, um dia, sonhou com a liberdade e ousou lutar por ela: Amílcar Cabral. Não fosse o seu cobarde assassinato perpetrado pela polícia política portuguesa, uns meses antes de eu lá chegar, e a Guiné teria podido sonhar com um futuro melhor. Apesar da pobreza!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Outros tempos …

Ainda se lembra das vertigens que sentia na aproximação a uma garota. O embaraço tomava conta dele, no preciso momento de agir, a ponto de perder algumas oportunidades de encontros.
Um dia, perseguiu uma linda jovem estudante, durante algum tempo, pelas ruas da sua cidade. Quando se aproximava mais dela, a coragem soçobrava e, na hora certa, optava por dirigir o olhar às vitrinas das lojas de comércio para iludir o acanhamento.
E nem a espera que a garota estrategicamente fazia, para lhe facilitar o encontro, incutia nele a coragem necessária para balbuciar um simples «olá!». Coisas de principiante! A audácia veio mais tarde, quando a experiência fez caminho.
Num domingo de verão foi, com dois amigos, para uma festa popular duma vila das proximidades. Estavam todos com a idade de «passar de pito para galo», vivendo uma adolescência despreocupada e em que apenas os estudos liceais exigiam mais atenção. Porque não há festa sem engates, mal avistaram um grupo de miúdas giras, passaram ao ataque. A tarde parecia ganha!
O Hilário, o jovem mais ousado, fez questão de se adiantar na aproximação à rapariga mais atraente, precisamente, aquela que o seu coração, num lampejo de emoção, tinha escolhido e apressado o batimento.
Sentiu-se desconfortado ao ver a forma insistente como o amigo procurava captar a graciosidade da menina. E teve de se contentar com uma outra garota do grupo, embora a atenção continuasse colada à eleita dos seus olhos.
No regresso a casa, não apreciou o atrevimento do Hilário quando, animadamente, este confirmava que haveria de a namorar, acreditando que tinha ganho o seu afecto. Sofreu, em silêncio, o vexame de ter sido ignorado.
E mais desanimado ficou quando viu o papel, que o Hilário exibiu com expressiva vaidade, onde constava o nome e a morada daquela princesa. Convenceu-se que os olhos esverdeados do seu companheiro tiveram um papel fulcral na sedução da menina, linda de morrer!
No dia seguinte, no intervalo das aulas, o Hilário colocou-lhe nas mãos um envelope fechado, devidamente selado, e pediu-lhe que o depositasse na estação dos correios. Foi solicito ao seu pedido, como que avinhando o destino.
Daí que não se surpreendesse ao constatar que a missiva era dirigida à garota da sua devoção. Não se fez rogado e deitou as palavras do Hilário no primeiro caixote de lixo que encontrou, substituindo-as por outras ainda mais sedutoras, escritas pelo seu punho.
A felicidade foi bem maior quando, poucos dias após, recebeu, na volta, o assentimento para um encontro que foi o início de um namoro tórrido que só terminaria uns meses mais tarde.
Quando soube da conquista do seu amigo, o Hilário ficou um pouco surpreso, sem imaginar, contudo, a traição de que tinha sido alvo. Limitou-se ao desabafo: - Caramba, pá! Ela não ligou à carta que lhe enviei. Escolheu ficar contigo: sorte tua!
Essa foi uma partida de que nunca se arrependeu. Porque, sabia bem que, como reza o ditado, «Na guerra e no amor tudo é permitido!».

                Carlos da Gama
                                         Foto: Google Imagens

terça-feira, 21 de junho de 2011

Saudades de água fresca …

Chegou o estio e, com ele, o calor das tardes longas e das noites mornas. É a estação que encurta e dá mais colorido às roupagens que usamos. É o tempo em que aumenta o prazer de uma bebida fresca.


Este é o tempo em que as noites são mais intensas e a terra mais generosa.
É nesta altura que nos abandonamos à imaginação e partimos à conquista de uma aragem mais fresca nas frondosas matas deste país ou nas praias do imenso oceano que nos cerca.
É o tempo de saciar a sede nas águas cristalinas das fontes da minha aldeia.
Este é o tempo que mais frequentemente me trás à memória a estadia na tórrida Guiné e nos hábitos que lá adquiri. Não esqueço que foi lá que me ficou o prazer do sabor agridoce do whisky bebido nas noites esquecidas pelo jogo do king ou da sueca.
Era lá que o leite mais pesava nos inúmeros bolsos da farda, quando o patrulhamento pelas matas secava severamente a garganta. Em mais nenhum período da minha vida eu bebi tanto leite enlatado, oriundo dos prados da Dinamarca e da Holanda.
Mais do que o prazer da sua bebida, era a prevenção de doenças tropicais que eu acautelava.
A água da Guiné carecia sempre de ser purificada para ser bebida e o seu sabor não seduzia vivalma. Lembro que, várias vezes, em plena mata, enchi o cantil de água corrente, colocando farrapos de algodão no gargalo para reter as impurezas visíveis, após o que introduzia dois comprimidos de desinfectante.
Ao beber aquela água, tinha que apertar o nariz para diminuir o intenso cheiro e sabor a lixívia. E não esqueço os milhares de vezes que sonhei acordado com a fonte de águas frescas e cristalinas que jorrava muito próximo da casa dos meus país.
E, lá nas matas da Guiné, jurei a mim próprio que, no regresso da guerra, primeiramente, haveria de saciar a saudade com a água fresca daquela fonte e só depois é que iria receber os abraços dos meus mais queridos.
É claro que não foi assim que aconteceu. Quando abandonei o táxi, que me transportou de Lisboa, corri para os afectos dos familiares mais próximos para partilhar as emoções de saudade que há muito retinha na alma. A fonte de água fresca ficou para segundo plano.
                Carlos da Gama
                                         Foto: Google Imagens

segunda-feira, 20 de junho de 2011

I can fly …






Que visão a das gaivotas
quando o céu se faz estrada
e as asas liberdade?
Fitam o céu das estrelas
e sonham com a chegada
do lusco-fusco da tarde!

Que feitiço tem o vento
que agiganta as florestas
e dá forma à tempestade?
Que mistérios guarda o tempo
quando deixa a inquietude
queimar mais que a saudade?

Indaguei sobre a razão
dos rios irem para sul
em busca do horizonte!
Por vezes, pura ilusão
quase sempre procurando
que a madrugada desponte!

Meu eterno sonho é voar
nas margens do teu amor
neste tempo que se esvai!
Quero em ti mergulhar
ser teu maior sedutor
poder dizer: «i can fly


                Carlos da Gama
                                         Foto: Google Imagens

domingo, 19 de junho de 2011

Inquietações do passado ...

Ainda lembro muito bem aquela manhã aquecida pelo tórrido sol equatorial, lá de Buruntuma. O arame farpado que cercava o aquartelamento era o fio de fronteira com a Guiné Conakry, cujo regime apoiava o movimento de libertação que, com uma organizada guerrilha, nos fazia a vida negra naquele território de África.
Metade da companhia tinha saído, pela madrugada, num patrulhamento com regresso marcado apenas para lá da meia-noite. O restante pessoal permanecera no quartel para garantir a sua defesa e executar as actividades de limpeza e alimentação, entre outras.
Havia que transportar o lixo para fora do quartel, mais propriamente, para um local distante cerca de duzentos metros. Mas, como estávamos numa zona altamente activa no campo militar, o lixo era transportado numa «Berliet» e escoltada por um pelotão bem guarnecido de material de combate. Todos sabíamos que, por várias vezes, a zona de descarga do lixo tinha sido emboscada pela guerrilha local.
Naquele dia, competia-me conduzir o pelotão que asseguraria a segurança da operação. Saímos do aquartelamento e dirigimo-nos, em fila indiana e em absoluto silêncio, para o local de depósito. Por dificuldades várias, o pelotão estava incompleto, pelo que apenas dispunha de cerca de dez homens. Percebi algum nervosismo mal disfarçado em alguns rostos, facto que desvalorizei, na oportunidade.
Apesar de me ter colocado à frente do grupo de homens, a cerca de metade do percurso, comecei a sentir-me desconfortado pelas tímidas, mas audíveis, vozes resmungadas a poluir o silêncio da mata. De imediato, passei palavra para que se regressasse ao silêncio. No entanto, apesar de segunda insistência, a voz aumentou de volume, facto inadmissível, quer perante a ordem dada, quer pelo perigo que representava para a segurança de todos nós.
Fiz parar a fila indiana, sai da minha posição e coloquei-me num espaço em que avistava todo o grupo. Com dureza, repeti a ordem de absoluto silêncio e reafirmei que só permitia que abrissem a boca quando se chegasse ao quartel. Mas, naquele momento, fiquei perplexo ao ver o Dias, de arma em riste, a fixar-me com olhar esgazeado e a resmungar com inaudita determinação: «- mas é aqui que devemos falar e não no quartel!»
Fiquei aturdido, pelo inesperado da afronta. Percebi, naquele preciso momento, que estava criado um contexto de inimaginável carga dramática. Tinha aprendido que nunca um comandante deve soçobrar perante situações de desobediência e inventiva em cenário de guerra. Daí ter reagido tempestivamente e duma forma que, há distancia de 35 anos, considero ter escolhido o caminho para a catástrofe.
Ao sofrer na alma a injúria daquele militar, senti-me levitar e, sem pressentir o atrito dos arbustos nas pernas, caminhei, lenta mas determinadamente, enquanto colocava, no módulo de rajada, a metralhadora que trazia colada ao corpo. Com meus olhos atentos ao mínimo gesto do meu inesperado opositor, falei-lhe com firmeza e louca coragem: «- se é aqui que queres falar, vamos a isso!».
Ao caminhar na sua direcção, o silêncio era sepulcral e apenas divisava aquele corpo esguio como que perdido num deserto de sal. Tal era o estado de sobressalto em que me encontrava. Se tivesse tido uns breves instantes de racionalidade, talvez reagisse com a cobardia necessária a não colocar a vida em risco. Lembro, com grande nitidez, que no momento, não valorizei o nosso bem mais precioso: a vida. Apenas senti o calafrio, feito vertigem, de que estava a executar o último dever naquela missão africana.
Mas, algo se passou naqueles instantes que aliviou o dramatismo daquela carga emocional. De repente, o rosto do Dias denunciou uma mudança de cor e senti-lhe uma certa moleza na forma como passou a segurar a arma. A crise estava a dissipar-se como que por milagre.


Abrigo subterrâneo em Buruntuma

 
 -  in «http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/05/guine-6374-p8285-tabanca-grande-4.html»

À minha determinação em resolver a situação ali mesmo, qualquer que fossem as consequências, o Dias balbuciou, com notória dificuldade, alguns gaguejos, refugiando-se na tese de que éramos poucos a executar aquela operação cheia de perigos.
Retorqui-lhe, com redobrado determinação, que não seria aquele o local para «esclarecer» a situação, exigindo-lhe obediência e aludindo que a questão criada seria resolvida mais tarde. 
O Dias era o alentejano mais alto da Companhia, filho único e de vida feita de grandes carências económicas. Soldado de poucas falas, mas afável e humilde. Nunca entre nós tinha havido a mínima perturbação ou qualquer azedume. Daí a surpresa do ocorrido.
Na tarde desse dia, justificou-se, em choro convulsivo, com o álcool que dizia ter abusado pela manhã, implorando perdão duma forma que me perturbou a ponto de não levar o assunto às últimas consequências. Apenas lhe assegurei que, dali por diante, estaria sob a minha constante atenção e que seria intransigente numa eventual próxima vez.
Não foi preciso! Passados cerca de dez dias, procurei confortar aquele homem, de corpo perfurado por dezenas de estilhaços, enquanto os paramédicos lutavam ingloriamente pela preservação da sua vida. Faleceu pouco tempo após ter sido brutalmente atingido pelo rebentamento de uma das armas mais mortíferas usadas pela guerrilha: o RPG.
Lembro de, na altura, me ter isolado porque perturbado pelo cenário a que tinha assistido. Na minha alma pairava a incerteza do meu comportamento dez dias antes. E pensava que se tivesse sido mais firme, participando superiormente o ocorrido, talvez o Dias tivesse sido preso e não teria estado sujeito àquele martírio. Estaria, porventura, ainda pelo Alentejo da sua vida. Esta inquietação persegue-me até aos dias de hoje!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens