domingo, 19 de junho de 2011

Inquietações do passado ...

Ainda lembro muito bem aquela manhã aquecida pelo tórrido sol equatorial, lá de Buruntuma. O arame farpado que cercava o aquartelamento era o fio de fronteira com a Guiné Conakry, cujo regime apoiava o movimento de libertação que, com uma organizada guerrilha, nos fazia a vida negra naquele território de África.
Metade da companhia tinha saído, pela madrugada, num patrulhamento com regresso marcado apenas para lá da meia-noite. O restante pessoal permanecera no quartel para garantir a sua defesa e executar as actividades de limpeza e alimentação, entre outras.
Havia que transportar o lixo para fora do quartel, mais propriamente, para um local distante cerca de duzentos metros. Mas, como estávamos numa zona altamente activa no campo militar, o lixo era transportado numa «Berliet» e escoltada por um pelotão bem guarnecido de material de combate. Todos sabíamos que, por várias vezes, a zona de descarga do lixo tinha sido emboscada pela guerrilha local.
Naquele dia, competia-me conduzir o pelotão que asseguraria a segurança da operação. Saímos do aquartelamento e dirigimo-nos, em fila indiana e em absoluto silêncio, para o local de depósito. Por dificuldades várias, o pelotão estava incompleto, pelo que apenas dispunha de cerca de dez homens. Percebi algum nervosismo mal disfarçado em alguns rostos, facto que desvalorizei, na oportunidade.
Apesar de me ter colocado à frente do grupo de homens, a cerca de metade do percurso, comecei a sentir-me desconfortado pelas tímidas, mas audíveis, vozes resmungadas a poluir o silêncio da mata. De imediato, passei palavra para que se regressasse ao silêncio. No entanto, apesar de segunda insistência, a voz aumentou de volume, facto inadmissível, quer perante a ordem dada, quer pelo perigo que representava para a segurança de todos nós.
Fiz parar a fila indiana, sai da minha posição e coloquei-me num espaço em que avistava todo o grupo. Com dureza, repeti a ordem de absoluto silêncio e reafirmei que só permitia que abrissem a boca quando se chegasse ao quartel. Mas, naquele momento, fiquei perplexo ao ver o Dias, de arma em riste, a fixar-me com olhar esgazeado e a resmungar com inaudita determinação: «- mas é aqui que devemos falar e não no quartel!»
Fiquei aturdido, pelo inesperado da afronta. Percebi, naquele preciso momento, que estava criado um contexto de inimaginável carga dramática. Tinha aprendido que nunca um comandante deve soçobrar perante situações de desobediência e inventiva em cenário de guerra. Daí ter reagido tempestivamente e duma forma que, há distancia de 35 anos, considero ter escolhido o caminho para a catástrofe.
Ao sofrer na alma a injúria daquele militar, senti-me levitar e, sem pressentir o atrito dos arbustos nas pernas, caminhei, lenta mas determinadamente, enquanto colocava, no módulo de rajada, a metralhadora que trazia colada ao corpo. Com meus olhos atentos ao mínimo gesto do meu inesperado opositor, falei-lhe com firmeza e louca coragem: «- se é aqui que queres falar, vamos a isso!».
Ao caminhar na sua direcção, o silêncio era sepulcral e apenas divisava aquele corpo esguio como que perdido num deserto de sal. Tal era o estado de sobressalto em que me encontrava. Se tivesse tido uns breves instantes de racionalidade, talvez reagisse com a cobardia necessária a não colocar a vida em risco. Lembro, com grande nitidez, que no momento, não valorizei o nosso bem mais precioso: a vida. Apenas senti o calafrio, feito vertigem, de que estava a executar o último dever naquela missão africana.
Mas, algo se passou naqueles instantes que aliviou o dramatismo daquela carga emocional. De repente, o rosto do Dias denunciou uma mudança de cor e senti-lhe uma certa moleza na forma como passou a segurar a arma. A crise estava a dissipar-se como que por milagre.


Abrigo subterrâneo em Buruntuma

 
 -  in «http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/05/guine-6374-p8285-tabanca-grande-4.html»

À minha determinação em resolver a situação ali mesmo, qualquer que fossem as consequências, o Dias balbuciou, com notória dificuldade, alguns gaguejos, refugiando-se na tese de que éramos poucos a executar aquela operação cheia de perigos.
Retorqui-lhe, com redobrado determinação, que não seria aquele o local para «esclarecer» a situação, exigindo-lhe obediência e aludindo que a questão criada seria resolvida mais tarde. 
O Dias era o alentejano mais alto da Companhia, filho único e de vida feita de grandes carências económicas. Soldado de poucas falas, mas afável e humilde. Nunca entre nós tinha havido a mínima perturbação ou qualquer azedume. Daí a surpresa do ocorrido.
Na tarde desse dia, justificou-se, em choro convulsivo, com o álcool que dizia ter abusado pela manhã, implorando perdão duma forma que me perturbou a ponto de não levar o assunto às últimas consequências. Apenas lhe assegurei que, dali por diante, estaria sob a minha constante atenção e que seria intransigente numa eventual próxima vez.
Não foi preciso! Passados cerca de dez dias, procurei confortar aquele homem, de corpo perfurado por dezenas de estilhaços, enquanto os paramédicos lutavam ingloriamente pela preservação da sua vida. Faleceu pouco tempo após ter sido brutalmente atingido pelo rebentamento de uma das armas mais mortíferas usadas pela guerrilha: o RPG.
Lembro de, na altura, me ter isolado porque perturbado pelo cenário a que tinha assistido. Na minha alma pairava a incerteza do meu comportamento dez dias antes. E pensava que se tivesse sido mais firme, participando superiormente o ocorrido, talvez o Dias tivesse sido preso e não teria estado sujeito àquele martírio. Estaria, porventura, ainda pelo Alentejo da sua vida. Esta inquietação persegue-me até aos dias de hoje!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

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