sexta-feira, 3 de junho de 2011

Burumtuma …

Há dias encontrei um amigo de longa data cuja amizade se forjou nas terras longínquas do ultramar português. E a conversa levou-nos até à guerra colonial, ocorrida na segunda metade do século XX.
Aí, o calor do assunto e a interessada atenção do meu interlocutor, trouxeram-me à memória alguns episódios mais dramáticos da minha estada na Guiné, nos idos anos de 1973 e 1974.
Foi apenas um ano que por lá estive, numa guerra de guerrilha que o «inimigo» levou a melhor. Naquele território da dimensão do Minho, Portugal tinha tantos militares como em cada um dos teatros de guerra de Angola e Moçambique, ou seja, 50 mil homens em cada colónia.
Este indicador permite entender a intensidade do conflito militar em cada região, sendo certo que era na Guiné que a guerrilha do PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde - mostrava-se mais ousada, guerreira e apoiada. Logo que aportei naquele território dei conta que cerca de um terço estava já tomado pelo movimento de libertação.

Após o primeiro mês na fantasmagórica Ilha de Bolama, estive em alguns aquartelamentos do leste da Guiné. Mas foi no de Burumtumba onde aprendi a relativizar a vida, tal era o stress de guerra a que estávamos sujeitos.
O PAIGC usava um armamento altamente sofisticado à época, enquanto os militares portugueses limitavam-se ao uso dos obuses, metralhadoras e restante material já utilizado na Segunda Guerra Mundial. Apenas a nível da aviação é que os portugueses tinham alguma supremacia.
Lembro bem a angústia que todos sentíamos quando os mísseis eram lançados do território da Guiné Conakry e que acertavam, invariavelmente, no alvo. Aquele zumbido, que se aproximava a uma grande velocidade, transmitia-nos a perturbadora sensação de que era junto de nós que iriam explodir. Eram segundos intermináveis e impiedosos que aniquilava qualquer manifestação de valentia e destruía qualquer veleidade de heroísmo.

Decorridos mais de 35 anos, lembro, como se fosse hoje, o primeiro ataque com mísseis que sofri no aquartelamento de Burumtuma Foi cerca das 07.00 horas da manhã. Os soldados do pelotão que comandava estavam já todos entregues à faxina do interior do aquartelamento, enquanto outros dois pelotões cedo tinham saído para um patrulhamento de quase 20 horas.
De repente, ouço três explosões ao longe, correspondentes ao disparo de três mísseis em direcção ao aquartelamento. Mulheres e crianças correm aturdidas para dentro do abrigo onde dormíamos, enquanto os militares saltavam para a vala. O ruído da explosão dos mísseis roubou-me a possibilidade de balbuciar qualquer palavra. Apesar do esforço que fazia para articular a voz, apenas passados uns longos segundos é que consegui falar, apoiar os mais afoitos ao pânico e a organizar a defesa em toda a zona de que era responsável.
Cerca de meia hora passada, regressei ao abrigo para uma análise das pessoas que lá estavam. E ainda hoje retenho na mais viva memória, um rosto de menina de 4 ou 5 anos, de olhar assustado, em cima de um beliche e com o corpo colado à parede, como que num esforço inglório de se esconder dentro daquele muro feito de gigantescas pedras e abundante cimento.
Foi aí que percebi melhor a injustiça daquela guerra que, para além de fazer vítimas entre a população mais frágil, não tinha qualquer sentido ou solução militar. Tratava-se de uma teimosia do regime que os jovens portugueses da altura pagaram muito caro.

Carlos da Gama
                      Fotos: Google Imagens

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