quinta-feira, 23 de junho de 2011

No cais de Alcântara …


Alcântara estava ensolarada naquele longínquo dia 13 de Setembro do ano de 1973.
Lisboa corria apressada pelas ruas e tinha-se enchido de gente da província que viera para uma última despedida dos jovens soldados que, pela tarde, embarcariam no Niassa, rumo à Guiné.
A grande maioria vinha do Alentejo já que o Batalhão de Cavalaria 8323/73 tinha-se constituído e formado em Estremoz. Apenas uns poucos, como eu, eram do norte do país.
Tudo, para mim, era novidade nos meus vinte anos. Não fazia a mínima ideia que final me estava destinado naquele filme de que era um protagonista forçado. Nenhum familiar eu tinha no cais do desespero e da saudade. Para além da penúria da deslocação a Lisboa, num tempo em que não existiam auto-estradas, eu assim preferi. Já imaginava que a melancolia seria ampliada pelas emoções da despedida para um destino todo feito de incertezas.
Ao meio da tarde, embarquei na companhia dos cerca de 500 homens, de várias toneladas de equipamento e armamento militar e de umas largas dezenas de caixões destinados a dar abrigo aos corpos daqueles que por lá deixassem a vida.
Quando as amarras libertaram o navio do cais, Lisboa ouviu o rumor crescente do choro da multidão que, numa constante agitação, se despedia com acenos ansiosos, com desejos de boa-sorte, com olhares fixos, com palavras de revolta e de um desespero impotente. Um cenário melodramático que atingia em cheio o coração dos embarcados.
Lembro que me recolhi a um canto do navio, de frente para o cais, assistindo, atónito, àquelas emoções libertadas com intensa comoção. Ao meu lado, vi soldados em pranto convulso enquanto as suas mãos se dirigiam para o local donde partiam lamentos lancinantes e se mostravam lenços brancos agitados com melancólica ternura.
Vi alguns, mais desesperados, a desfalecer, quer devido às fortes emoções, quer ao excesso de álcool de que tinham abusado. Daí o cheiro pestilento dos bafos etílicos misturados com vómitos imundos espalhados pelo chão.
Durante a alongada espera do soltar das amarras, ainda em pleno Tejo, perpassou pela minha alma a proibida letra de uma melodia do cantor de intervenção, Adriano Correia de Oliveira: «Tejo que levas as águas, correndo de par em par, lava a cidade de mágoas, leva as mágoas para o mar!».
Aquela despedida deixou-me em grande sobressalto e despertou em mim algumas questões para as quais não conseguia encontrar respostas. Sobretudo, a razão porque os homens e mulheres do meu país, apenas ali, no cais de Alcântara, reagiam à dor de ver partir os seus filhos para incertas paragens de sangue, suor e lágrimas.
Mas foi lá longe que, para além da lógica da guerra, lidei com uma realidade económica e social que jamais julguei existir e que me impressionou profundamente. A Guiné era, e continua a ser, um território sem cor, sem alma, sem economia, sem organização social, sem horizontes, sem liberdade, sem vida … sem quase nada!
Na sua história, teve, apenas, um líder, por quem nutro uma grande admiração, que, um dia, sonhou com a liberdade e ousou lutar por ela: Amílcar Cabral. Não fosse o seu cobarde assassinato perpetrado pela polícia política portuguesa, uns meses antes de eu lá chegar, e a Guiné teria podido sonhar com um futuro melhor. Apesar da pobreza!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

1 comentário:

  1. Apesar de não ter assistido a esse momento da tua vida, senti neste texto a angústia da partida, com uma lágrima no olho.

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