domingo, 26 de junho de 2011

Fidelidade canina ...

Micha
O ultimato tinha sido dado. Tínhamos 48 horas para abandonar Buruntuma. Desde que ocorreu a revolução dos cravos no meu país, no dia 25 de Abril desse ano de 1974, que deixamos de patrulhar o território que estava sob a jurisdição da companhia sediada naquele aquartelamento.
Já há alguns meses que iniciamos a confraternização com os guerrilheiros do PAIGC, na perspectiva de que a guerra chegara ao fim.
No entanto, a politica em Lisboa estava mergulhada no caos do PREC – processo revolucionário em curso –, com fugas de capitalistas e de capitais para fora do país e a rua tomada por militares e populares que reivindicavam o tão propalado «caminho para o socialismo».
O ultimato era determinado e ameaçador. Se as tropas portuguesas não retirassem da região de Buruntuma aquele aquartelamento seria alvo de um ataque de artilharia em grande escala. Houve que, de imediato, transmitir essa ameaça aos altos representantes do governo português, em Bissau. E a resposta não se fez esperar: não seria permitido o abandono de Buruntuma e, a acontecer, seria considerado como uma deserção e julgada como tal.
Lembro bem que todos ficamos perplexos e meio perdidos entre a pressão inflexível do PAIGC e a negativa recebida do Governador do Território da Guiné-Bissau. Sabíamos que a guerrilha não estava brincar.
Eu próprio, tive a oportunidade de confirmar a progressão que o PAIGC tinha efectuado por dentro do território de administração portuguesa. Souberam aproveitar o baixar de braços do exército português, pela expectativa do fim das hostilidades que a revolução dos cravos tinha gerado, criando postos avançados bem disfarçados até às proximidades do aquartelamento português.
Sentíamo-nos, literalmente, entre a espada e a parede. Entretanto, a população foi sensibilizada pelo PAIGC a abandonar rapidamente aquela aldeia e a se refugiar nas matas vizinhas, uma vez que estava em marcha a preparação de um fortíssimo ataque, se as tropas portuguesas permanecessem por ali.
Através das transmissões militares, os aquartelamentos vizinhos foram informados da situação grave em que nos encontrávamos. E, mesmo contra as ordens da hierarquia, foram muitos os soldados que se prontificaram a prestar-nos auxílio e a conduzir as «Berliets Tramagal» até Buruntuma para nos retirar daquele inferno.
Tivemos, também, a generosidade do próprio PAIGC, que foi ao ponto de nos garantir plena segurança, no caso de pretendermos abandonar Buruntuma pelo lado da Guiné Conakry e, inclusivamente, fretar um avião que nos conduziria a Portugal.
Perante este cenário, de que estávamos dispostos a aceitar, os representantes do governo português deslocaram-se a Buruntuma na tarde que antecedeu o limite de tempo do ultimato, autorizando que abandonássemos aquela região e recuássemos para o aquartelamento de Piche, zona onde tínhamos passado os primeiros quatro meses de Guiné.
O que me impressionou, naquele momento, foi viver, na madrugada do abandono, algumas situações que constituíram, para mim, uma grande lição de vida.
Kiko
A primeira, foi assistir à manifestação hostil da população que, até ao momento, nos mimava de uma forma demasiado submissa, o que representou um choque no orgulho já ferido pela derrota na guerra.
Uma outra situação, foi olhar para aquele imenso «comboio» de Berliets de aquartelamentos vizinhos que, soube depois, os seus condutores passaram toda a noite em claro para irem em socorro dos que estavam «em maus lençóis».
Uma fraternidade que me comoveu intensamente.

Mas, a cena que mais me deixou aturdido e magoado, foi ver os nossos cães de guarda, que nos tinham servido com uma fidelidade «canina», a correrem atrás dos camiões, que nos levavam de Buruntuma, num esforço levado à exaustão.
Confesso que essa cena enterneceu-me até às lágrimas porque, todos sabíamos, muitos de nós deviam a vida à audácia que aqueles animais demonstravam em combate, quer no alertar para a aproximação do inimigo, quer na sentinela aos abrigos nas noites quentes daquelas paragens.
Foram, sem dúvida, os melhores vigilantes nocturnos e os verdadeiros defensores dos militares portugueses em Buruntuma.
Esta cena acordou-me para a cobardia imensa do ser humano que, com demasiada facilidade, despreza aqueles que lhe dedicam a vida. Infelizmente!
E para confirmar a tese de que não existe maior fidelidade que a canina!

                                         Fotos: Joaninha

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