terça-feira, 14 de março de 2017

O esmorecer da esperança ...







Leio o Torga nos seus Diários XV. Tem quase oitenta anos e expressa-se numa invejável vitalidade literária. 
No entanto, as suas letras e versos caminham paulatinamente de encontro à finitude, que antevê muito próxima. Sente-se o cansaço duma vida de braço dado com a inquietude.
Torga vestiu sempre uma fisionomia austera. No entanto, à medida que se aproxima do fim, como com quase todos os idosos da nossa praça, acrescenta severidade e rigidez ao semblante.
Sempre me interroguei da razão dos velhos exibirem, quase sempre, rostos tristes e melancólicos. 
Parece que a luz da vida desaparece com a idade, cedendo lugar à penumbra. O pensamento rápido e a memória prodigiosa vão dando lugar ao esquecimento. A solidão substitui a algazarra festiva doutros tempos, o olhar fica mais fixo em horizontes esvaziados de sonhos e a chama da vida vai-se apagando lentamente.
Há um tempo para tudo. E a velhice é o tempo do fim. Do esmorecer da esperança e da certeza de que a vida não é perene. E disso damos conta, sobretudo, após vermos partir os nossos afectos maiores. Pois é quando ficamos sem chão!

quinta-feira, 9 de março de 2017

A vida é uma lição






«Desde a primeira hora que adivinho a desilusão de hoje. Foi um pressentimento vago, mas teimoso. E, afinal, todas as minhas previsões se confirmaram. A razão tem-me enganado muitas vezes. A intuição, nunca.»

Miguel Torga, in Diários XV


Gosto de, uma vez por outra, rumar até junto das águas mansas do estuário do Cávado para elevar a memória aos confins da fantasia. É nesses momentos, de pura introspecção, ou de solidão acompanhada, que a vida se desfaz em vento dispersando a bruma de um passado que já não reconheço.
Perdi a ousadia de revisitar contextos em que me achava dono do tempo. Mais recentemente, a fotografia achou-se desfocada. Num instante sem retorno.
E só em pensamentos fugazes é que revivo alguns tomos de dias felizes do meu passado morto. Sabendo que o pior e o melhor de nós perdura quase sempre na memória dos outros.
E esse é o momento para tudo questionar e pôr à prova. Do que se passou em décadas distantes, resta, tão só, o que é nuclear em presenças, ternura e afectos. 
Porque a vida é uma lição que só se aprende, definitivamente, quando já não sobra mais tempo.


terça-feira, 7 de março de 2017

Vigilia






Altas horas da noite.
Acordado,
Rememoro o passado,
Analiso o presente
E adivinho o futuro.
Procuro,
Humanamente,
Dar sentido
Ao que fui,
Ao que sou
E ao que serei.
Mas a minha verdade
Não tem a claridade
Da razão.
É esta aflição
     Continuada
     Que no meu coração
     Bate descompassada.
                 
 
                            Miguel Torga (Diários XV)