terça-feira, 31 de maio de 2011

Memória viva …


Já lá vão alguns longos anos que o Tio Quico nos deixou. Partiu, como viveu: de mansinho, sem fazer alarido e com a humildade que sempre o caracterizou.
Ficou só a saudade pendurada na memória dos conviventes de afectos mais chegados.
E a imagem de um homem forte na estrutura física mas fragilizado pela chiadeira de uma bronquite crónica que lhe exigia um esforço acrescido na respiração de todos os momentos.
Mesmo assim, o prazer do tabaco acompanhou-o toda a vida!
O Tio Quico é um personagem importante nos primeiros anos da minha vida, mais concretamente, na infância, numa época em que faltava quase tudo a nível económico e social. Mas um tempo feliz!
Na altura, a sociedade não usufruía da tecnologia que os tempos modernos dispõem de sobra. A televisão não tinha, ainda, chegado à terra do meu nascimento e a radiotelefonia era um luxo só de alguns mais «abastados».
Aquele homem povoou a minha infância de sonhos, quando juntava os sobrinhos e os conduzia para brincadeiras infantis, contava-lhes histórias de encantar ou os fazia sentirem-se actores em cenas da vida do campo que, com bonomia, os incitava a teatralizar. Saudades do Tio Quico!
Lembro bem da satisfação que sentia quando o acompanhava na caça aos pássaros em que utilizava uma fisga que ele próprio manufacturava. E não esqueço a sua impressionante pontaria, qualquer que fosse a distância do alvo. O meu papel, nesse registo, era, tão só, o de colocar uma corda na cintura para poder pendurar a caça, à semelhança do que os caçadores profissionais faziam com coelhos ou perdizes. Sempre aquela corda beneficiou da excelente mira do Tio Quico!
Depois, rumávamos para uma fonte, de abundantes e cristalinas águas, para iniciar a liturgia de depenar os pássaros, de os abrir com mestria para os limpar por dentro e de os colocar, com um pouco de sal e azeite, numa folha de couve em cima dum generoso braseiro que, entretanto, a minha mãe tinha adiantado. Passados escassos minutos, saboreávamos um suculento pitéu cujo paladar perdura na minha mais viva memória da infância.
Tudo isto emprestava à vida um encanto que as novas gerações dificilmente conseguem valorizar. A ausência de televisão, por exemplo, enchia as noites e os serões de um convívio partilhado de emoções que cimentava fortemente as relações familiares.
Lembro bem de perceber, ainda de tenra idade, a animação que as novelas transmitidas pela rádio provocavam nas pessoas que se juntavam à volta de uma dessas novidades. E a satisfação como depois se comentava o enredo dos episódios ouvidos com respeitosa atenção.
Mais tarde, foram as telenovelas a juntar as pessoas em frente do pequeno ecrã da televisão com a mesma magia de descoberta. Porque, enquanto se assiste ao desenrolar de histórias, mais ou menos bem contadas, a vida esquece as rotinas do dia-a-dia e, não raras vezes, sente-se a ilusão de se fazer parte do enredo, como se aquela fosse também a nossa história de vida.
Tenho para mim que as telenovelas têm efeitos extraordinariamente benéficos para a saúde psíquica de muitos e atenua a dor de uma das principais pechas sociais da actualidade: a solidão.
Que seria da vida de grande parte dos idosos do nosso país se não fosse o entretenimento que as telenovelas proporcionam? Que sonhos de vida seriam necessários para completar de magia o espaço que uma história bem animada preenche na vida dos nossos mais velhos?
A vida, todas as vidas são feitas de encontros e desencontros. Mas o que fica é a memória do que fomos e somos nesta caminhada de ignorados destinos. E é à boleia dos afectos recebidos num tempo precioso do meu percurso que aqui deixo fragmentos da minha memória viva!

Carlos da Gama
                      Fotos: Google Imagens

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Momentos …

Deu para sair nesse dia pela calada da noite.
O caminho fez-se, assim, mais liberto de confusão. Cedo se chegou ao destino: Aver-o-Mar. É para fazer jus ao nome da pequena povoação que para lá me dirijo tantas vezes: para ver o mar!
Não sei porquê, mas o mar transmite-me emoções várias. Desde logo, uma sensação de liberdade. Porque gosto de estender o olhar pela imensidão das suas águas e perscrutar outros horizontes e a maresia de saudade.
Mas também me incute uma sensação de assombro. Porque o oceano encerra muitos mistérios, esconde muitas histórias de aventura e ousadia e desperta mitos ancestrais.
Para o meu país, o mar foi fonte de inspiração e terreno de descoberta. É nele que muitos poetizam a vida e descobrem palavras de magia para entender a razão desta caminhada. Foi por ele que muitos se aventuraram numa epopeia que, como falou Camões, «deu novos mundos ao mundo». É nele que muitos ainda buscam o sustento. Numa faina de muitos sonhos mas também de vários perigos.
Não se entende porque é que o mar deixou de ter a importância do passado para a economia do país. Não se entende que um país com tanto mar tenha ignorado, anos a fio, esta enorme riqueza estratégica para o seu desenvolvimento. Não se entende!
A importância do mar está onde a quisermos colocar. Lembro que, há cerca de dez anos, teve lugar um concurso, dirigido a jovens: ganhava quem escrevesse a melhor mensagem numa carta a enviar ao Presidente dos Estados Unidos da América. Iniciativa à escala europeia, o vencedor desse concurso foi um jovem português.
A carta que dirigiu ao Presidente dos EUA consubstanciava-se num convite para que aquele dirigente mundial olhasse o mar antes de tomar decisões importantes para a humanidade. Acho que não terá sido por acaso esta imagem do mar. Porque ele permite que estendamos o pensamento ou fiquemos acantonados nos horizontes da liberdade. Permite verter angústias e conflitos da alma. Permite, sobretudo, a serenidade para se perceber mais profundamente a origem das coisas.
Mas voltemos ao início desta prosa. Quando a noite se faz de luar por entre as dunas, as gaivotas fazem-se anunciar num chamamento contínuo de que a noite do mar é para ser vivida e não dormida. Em Aver-o-Mar são delas os primeiros sons da madrugada. Esvoaçam no enorme recinto junto da praia, enquanto o mar continua resmungando a sua missão e canseiras.
Não há melhor remédio para a alma do que acordar com o céu azul ainda tingido de vestígios da lua e o cheiro a maresia a inundar os pulmões que sustentam a vida. São estes momentos, em que a natureza faz questão de se revelar em toda a plenitude, que transportam magia e justificam tanto caminho.
São estes momentos…

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Navegar é preciso …



Vivo a dor e o tormento
Dum destino indesejado
Que me deixou moribundo!
A esperança que alimento
De um tempo renovado
É viajar pelo mundo!

Os ventos da tempestade
Soprados em contraluz
Por génios da covardia,
Lançaram a escuridade
No caminho que conduz
Ao novo nascer do dia!

Com asas de aventura
Espalhei todas as mágoas
Por entre dunas de areia!
Em momentos de ternura
Naveguei em calmas águas
P'las noites de lua cheia!

Apesar deste naufrágio
E da turbulência da alma
Tento esboçar um sorriso!
Dando mais força ao adágio
Que dá alento e acalma
De que «navegar é preciso»!

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

Lágrima de Preta



Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para analisar.


Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

Antonio Gedeão
                      Foto: Google Imagens

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O tempo …



O tempo não pára.
É como um rio
que se esvai sem se esgotar!
É um instante que passa
apressado...
É uma doce ilusão
de caminho para o mar!
O tempo …
é um presente
que nos trás presos à vida!
É um momento
que dá alento
à realidade sentida!
O tempo …
Esse enigma
que nos persegue,
que torna a vida
numa eternidade
perene!
Olho para trás
da idade ainda petiz,
Vejo um dia … ou outro
instante feliz! 
O tempo …

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

terça-feira, 24 de maio de 2011

A quimera do Tio Quico

 
O poema que mais inspirou a minha juventude, e que me fascinou até aos dias de hoje, é da autoria de António Gedeão e tem o título de «Pedra Filosofal».

Sempre que a nostalgia toma conta de mim e sinto a alma mais aprisionada pelos casos da vida, a leitura dessa epopeia literária ou a audição da musicalidade que lhe emprestou Manuel Freire, deixa-me com maior serenidade e renova-me a vontade de viver.

É impressionante como umas simples palavras, quando estruturadas em pensamentos de sonho, conseguem fazer-nos viajar do passado ao presente, na direcção do futuro. Este belo poema incute-me força de aventura e conduz-me para novos estádios de alma de que tanto estou precisado. Porque, julgo saber, o conceito de sonho traz a magia aconchegada em horizontes de liberdade!

É da natureza humana esta procura incessante pela quimera do sonho. E a vida sem este espaço de liberdade acaba por não ter qualquer sentido. Porque é lá que se pode encontrar a felicidade tão procurada pelo cidadão comum.
A frase cimeira do poema de Gedeão – «Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida!» – condensa, a meu ver, toda a mensagem de utopia que justifica a existência humana.

Ainda menino, assisti a um episódio fantástico que me encantou a ponto de o lembrar ao longo da vida. Após um dia de tempestade invernal, com chuva forte e abundante trovoada, uma descarga eléctrica atingiu um eucalipto de grande porte, deixando-lhe a ramagem completamente carbonizada.
Na época, acreditava-se que as faíscas ou relâmpagos eram compostos por um metal muito valioso e que quem o encontrasse ganharia um bom dinheiro. Nesse tempo era grande a escassez de recursos e inexistentes as oportunidades profissionais. As carências económicas manifestavam-se não só na precariedade das habitações como a nível da alimentação e vestuário. A pobreza extrema da grande maioria dos cidadãos era um terreno propício à fermentação de sonhos impossíveis.

O Tio Quico, homem simples e afável, que preencheu de afectos a minha infância, abeirou-se do local onde tinha caído o raio e começou a cavar um enorme buraco perseguido pela quimera do sonho. Cavou, cavou e cavou … até que a ausência de quaisquer vestígios, que lhe acrescentasse mais ânimo, o obrigou a desistir. Tanto esforço para nada! Foram muitas horas de expectativas sonhadas e de ilusões acalentadas.
A pouco e pouco, vi-lhe o brilho do olhar a apagar-se e a auto estima inicial a dar lugar a uma desilusão sofrida. Sei bem que, como diz o poeta, «o sonho comanda a vida!». E sei, também, que não existe dor maior que a de sentir os sonhos esboroarem-se.

Aquela jornada tinha sido levada a cabo com o mesmo espírito de aventura e de expectativas que veste o ânimo dos garimpeiros do nosso tempo. Pelo que deve ter sido muito duro para aquele homem ter desistido de concretizar as utopias. De qualquer modo, a vida do Tio Quico regressou à normalidade feita de pobreza conformada.
Mas tenho para mim que, apesar do resultado falhado, terá valido a pena o esforço. Porque foi construído num tempo de fermentação de expectativas sonhadas. E sonhar faz bem à alma. Nem que seja por tempo escasso e por causas impossíveis.

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O sentido da vida …

Um dia destes, dei comigo em animado diálogo, com um velho amigo, sobre um tema que tem apaixonado gerações de pensadores até aos nossos dias: o sentido da vida!
E cada um de nós procurava, com despropositada arrogância, ganhar o outro para as «verdades absolutas» do nosso pensamento, como se o assunto fosse de fácil objectividade e compreensão. E não é, de todo!
Vivemos o dia-a-dia embriagados com as rotinas que construímos e os anos passam a uma velocidade estonteante. De repente, damos conta que parte das utopias da adolescência e juventude transformaram-se em realidades, enquanto outras continuam inacessíveis à racionalidade. E uma das questões que permanece imutável, e sem respostas absolutas, é o sentido da vida, ou seja, a razão de ser desta passagem breve do ser humano pelo planeta.

Perturba muito sabermo-nos tão frágeis quando olhamos mais longe. Sobretudo, quando ousamos comparar-nos com alguns dos seres da natureza de que somos parte integrante.
Quando, por vezes, lanço o olhar mais atento sobre, por exemplo, obras arquitectónicas, um dos pensamentos que me condiciona a razão é a irracionalidade que parece advir do facto da minha média de vida ser infinitamente menor do que a da obra de arte e dos respectivos elementos que a compõe. O ser humano tem um prazo de validade desmesuradamente menor quando comparado com o tempo de vida de outros seres e elementos da natureza.

Estou, neste momento, a avistar, pela vidraça do meu gabinete, uma oliveira. A planta tem cerca de 20 anos e ainda não saiu do infantário. E sei que, se não houver mão humana a condicionar-lhe o futuro, ela terá uma longevidade de centenas de anos. Ou seja, por este gabinete passarão várias gerações de homens enquanto a oliveira permanecerá por ali algumas centenas de anos.  Uma simples constatação que reflecte bem a fragilidade do ser humano e da idade breve de que se faz a sua vida. E esta torna-se ainda mais curta quando vivemos apressados os dias e não damos conta que os anos se esvaem num ápice.
Daí que apeteça repensar toda a estratégia de vida que construímos e todo o sentido que damos a esta passagem. E que sejamos tentados a procurar responder às questões de vida e de morte com a existência desejada de um ser superior que tudo regula e acompanha. Esta é uma inquietação que tem perpassado os séculos sem que, a meu ver, tenha sido possível obter uma resposta objectivamente aceitável.

Os dogmas não satisfazem a avidez que sinto na alma de compreender de onde venho e para onde vou. Preciso de objectividade e de racionalidade. Não do manto diáfano de que Deus é o ser supremo, «criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis». É curta esta ideia perante o sentido da vida! Porque mais condicionada pela necessidade.
Não é por acaso que Antero de Quental, num dos seus magníficos sonetos, questiona, de forma sublime, esta versão de Deus criador do homem: «Deuses (…) porque nos criaram?», deixando que, nos versos seguintes, surgisse a resposta que não desejaria obter: «(…) mas os deuses, com voz ainda mais triste, dizem: Homens! Porque é que nos criastes?!”».

Julgo que este pensador das questões da alma, expoente de uma plêiade de grandes escritores que ficou conhecida pelos «vencidos da vida», soube, melhor que ninguém, que as questões metafísicas nem sempre conduzem a um final feliz. Porque sempre o homem questionou, sem sucesso, a razão de ser da existência humana e o verdadeiro sentido da vida. Parafraseando Miguel Torga, também eu acredito que a vida só tem o sentido que cada um lhe dá!


Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

domingo, 22 de maio de 2011

Olhar o mar!

A noite foi de luar manso e de neblina quente. A hora ia já avançada quando aparcamos. O primeiro sinal de que mudamos de rotina é a maresia que se faz presente logo que abro a janela da Micha. E as gaivotas que, de quando em vez, emitem sons pela noite, como que a desejar as boas-vindas.
O mar estava ali tão perto. E anunciava-se constantemente com o rumor de teimosia das ondas. Apetecia estar ali eternamente aconchegado a contemplar o mar pela noite dentro.
Saborear o silêncio do seu murmúrio. Ficar embevecido com o prateado das suas águas pelo reflexo do luar. Estávamos todos ali fruindo a serenidade da vida: nós, o mar e a lua. Que mais ambicionar sentir? Talvez esta seja a felicidade tão procurada: momentos de paz em completa harmonia com a natureza que mais enternece!
Apetece registar o momento … e não regressar mais à vida. A noite completou-se com uma mistura de emoções libertadas. Pudera! A vida de cada um é feita de momentos que, para o bem e para o mal, traçam o destino de forma inexorável. E estes momentos de parceria e grande intimidade com o mar e o céu da lua dão-nos uma visão mágica do viver!
De manhã, saí da Micha e caminhei longamente pela praia ainda deserta de gente. Aqui e ali uns pescadores solitários lançando o isco para a captura do sustento. De olhar fixo no mar e na linha e aguardando pacientemente um simples repuxo da cana, estes homens não sentem o tempo passar. É a esperança que lhes alimenta a alma e lhes dá vida para renovar aquela rotina cheia de maresia.
No caminho, junto da rebentação, admirei a força das águas que não se cansam de exibir o branco da espuma a subir o espraiado. Mais à frente, um vulto negro de mulher-avó curvado sobre a areia fresca da manhã. Procurava, no restolho que o mar devolveu à praia, qualquer objecto que levasse uma magia de afectos aos seus mais novos. O sonho comanda a vida… e ele está presente nessas buscas de algo desconhecido que povoa o imaginário das gentes do mar!
As gaivotas estão em maior número. O mar está mais tranquilo. E os ABBA continuam a dar uma excelente sonoridade a este silêncio de palavras escritas. E eu vou abandonar a tela para melhor olhar o mar!

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sentir a lua no peito …




Tenho sede de voar
No céu de um azul feito
Com poemas de ternura!
Ver o vento a esvoaçar
Sentir a lua no peito
E o frenesim de aventura!

Preciso de reabrir o sonho
Nos campos da liberdade
Caminhar sem ter destino!
Vaguear por entre a bruma
Ouvir histórias pela tarde
Como quando era menino!



Por vezes, sinto apertadas
As margens do imenso rio
Que navego de par em par!
Em noites de lua cheia
O feitiço do seu brilho
Lembra a espuma do mar!

Quando a saudade da alma
Mostra a luz do sol poente
Numa hora breve e sentida!
Semeio impulsos de afecto
Na memória ainda quente
Duma Fénix renascida!

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Por uns cêntimos …

Desde o início da minha actividade que, à entrada da empresa onde trabalho, vejo um homem franzino, de olhar arredio e sorriso perturbador, sempre solicito a dar os «bons dias» ou as «boas tardes» aos transeuntes. Um ser frágil e demasiado submisso perante tudo e todos. Facto que, cedo, me chamou a atenção.
Nos primeiros tempos, não valorizei a sua estadia diária naquele local, quer chovesse e estivesse frio, quer o estio castigasse a própria sombra. Ele ali permanecia de olhar atento aos que surgiam na entrada do complexo empresarial como que implorando um simples olhar que lhe permitisse acenar com a cabeça e confirmar a saudação do momento.
Com o tempo, foi ganhando confiança que lhe permitia vaticinar, a todos os passantes, sobre o clima que fazia ou que estava anunciado. Sempre respondi aos cumprimentos. Até que um dia aquele homem surpreendeu-me com a tirada: «- São horas do trabalhinho não? O senhor doutor é médico, aí?». Não lhe respondi por considerar, no momento, que tinha ousado entrar na minha identidade, facto que considerei abusivo. Mas arrependi-me, quase de seguida, da forma, algo prepotente, como tinha agido. Mas o momento tinha passado!
Só mais tarde dei conta do que fazia por ali aquele pobre homem. Porque lhe reconhecia um olhar mais atento nas bicicletas ou motorizadas que estacionavam junto dele. Era o guardião daqueles veículos de duas rodas em troca de uns parcos cêntimos. Todos os dias lá está, sempre na ânsia de que chegue mais um, como o caçador que percorre montes e vales no encalço de conseguir uma ou outra perdiz que justifique o esforço.
A escassos metros de distância, avista-se um espaçado parque de carros onde os arrumadores, organizados por turnos, não têm mãos a medir na ajuda ao estacionamento e à cobrança da respectiva moedinha.
Entre o seu pequeno mundo e o que vê à sua frente existe uma enorme diferença, quer na actividade, quer nos resultados obtidos. Também ali a vida se mostra injusta e a sociedade oferece oportunidades diferentes. Afinal, aquele contexto não é mais que o espelho da sociedade capitalista em que vivemos.
Há mais de três anos que vejo aquele homem e não tenho memória de algum dia ter faltado àquele compromisso de guardador de veículos de duas rodas, qualquer que seja a cara do tempo. Por vezes, encontro-o a tremelicar de frio quando os rigores do inverno se manifestam. Outras, vestido de uma surrada t-shirt para melhor se proteger dos sufocos do verão.
Não poucas vezes, imagino aquele homem a contar os cêntimos amealhados no final de cada dia. Certamente que não gastará muito tempo a fazê-lo. Mas será sempre de sorriso aberto que, no dia seguinte, estará no seu «posto de trabalho».

Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

domingo, 15 de maio de 2011

Carta de navegação

Estava ali, de fato negro, camisa escura e gravata branca. As mesmas cores do curso que tinha escolhido frequentar na Universidade.
O cerimonial assim o exigia e ele tinha aceitado aquela indumentária. Que era contrária à que sempre usou. Talvez porque compreendeu que este seria o início de um novo ciclo da sua vida.
A festa foi bonita. Apesar de, aqui e ali, os discursos repetitivos ameaçarem de alguma monotonia a tarde alongada. Mas, no conjunto, esteve bem.
«Recebeis, hoje, a vossa carta de navegação!». Foi assim que a «Magnifica» Reitora da Universidade definiu o momento. Eram também para o Carlos Eduardo aquelas palavras. Ali estava, com garbo e visível orgulho, a receber a sua «carta de navegação», o diploma por que tanto se tinha esforçado!
Vi-lhe o rosto iluminado de felicidade no momento que foi chamado ao palco para receber o «canudo» de mestre em arquitectura. Aquela manifestação  de orgulho estampado na alma, pareceu-me ser a mesma sensação de um alpinista que atinge o cume da montanha e se prepara para olhar o horizonte a perder de vista. Num cenário difícil mas não impossível. O mais importante tinha sido a chegada ao cume.
Um turbilhão de emoções tomou conta de mim no preciso momento em que o meu filho recebeu o diploma. Que eu espero constitua a sua verdadeira «carta de alforria».

Senti um indisfarçável orgulho por ver ali o Carlos Eduardo que acompanhei, desde o nascimento, com muito amor. Um sentimento de enorme serenidade e conforto invadiu-me a alma. Fiquei feliz por lhe ver no olhar o brilho de felicidade. Porque, também para mim, aquele era um momento especial muito desejado. E ele sabe bem disso!
Por vezes, exteriorizamos mal as emoções que se soltam de nós. Sobretudo quando elas são feitas de nostalgia e de liberdade! Por vezes, falamos diferente do que sentimos. Por vezes… Mas é sempre no mar de afectos que recolhemos o melhor da vida e que nos encontramos. É no oceano de emoções que navegamos sempre. Sempre!
Parabéns Carlos Eduardo. Que a vida te abençoe. Que sejas feliz. Tu mereces!
  Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

terça-feira, 10 de maio de 2011

Maresia é…



Água colada ao corpo
Salgado pela saudade.
Solidão meio perdida
Destino contrariado
Cor azul de liberdade!

Trocar olhares de ternura
Libertar sempre o desejo
Ofertar sorrindo a árvore
Na visita aos poetas
Para receber um beijo!


                Maresia é …
                Descobrir manhãs de sonho
                Junto das tágides sereias.
                Absorver cada palavra
                Descobrir em cada gesto
                O coração das ideias!

                Olhar a perder de vista
                As águas mansas do mar
                Não se sentindo perdida!
                Fazer justiça ao poeta
                «O sonho comanda a vida»!


                Maresia é …
                Soltar de vez o desejo
                Reprimido todo o ano!
                Gritar bem alto as palavras
                E os suspiros perdidos
                Na largura do oceano!

                Fazer o tempo parar
                Em mágicas madrugadas
                Fazer amor ao luar
                Olhar o céu carregado
                De estrelas encantadas!


                Maresia é …
                Nas doces águas do mar
                Conquistar a eternidade!
                Voar noutras latitudes
                De sonhos e de coragem
                Maresia é… saudade!


                Carlos da Gama
                      Foto: Google Imagens

domingo, 8 de maio de 2011

Espuma do tempo …




Nesta tarde de Maio
Mistura de sol e chuva
Quase inverno ou verão!
O refúgio que procuro
Tem o sabor da ternura
E o calor da paixão!

Micha é sonho adolescente                                  
De sentir a natureza
Transporta muita magia!
É visão dum tempo novo
Em toda a sua pureza
Com azul de maresia!

É promessa de liberdade
Ilusão de regresso à vida
O horizonte que procuro!
Abrigo de tempestades
Esta alcofa é de sonhos
E saudade do futuro!

Olhando à minha esquerda
Vejo as ervas crescidas
Os limoeiros despertos
E alguns kiwis sem sorte
Todos sentem-se inquietos
mexidos pelo vento norte

Neste quadro acolhedor
Que tantas e tantas vezes
Deixo voar meu pensamento!
Percorro montes e vales
Aportando quase sempre
Num azul de mar sem tempo!

Carlos da Gama
 Foto: Google Imagens

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Pobre país!

Cá estamos, de novo, atirados para o fundo de um poço onde a luz se vê cada vez mais longe. Daí a presença, nas últimas semanas, da denominada «Troika», comissão constituída pelo Banco Cental Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional.
Após terem tomado o pulso às condições do país, disponibilaram uma ajuda financeira para fazer face aos problemas com que estamos confrontados. Uma ajuda demasiado dolorosa para os portugueses, porque vai ser rembolsada a peso de ouro!
Ou seja, uma vez mais temos o país adiado e a empobrecer dia-a-dia. Triste sina, a nossa!
Sobre esta nação, a que pertenço, já o General da Roma antiga, Caio Júlio César definiu como um povo que «não se governa, nem se deixa governar». Ontem, como hoje!
De facto, sucessivos governos e lideranças conduziram o país, nas últimas três décadas, à situação humilhante de estarmos, pela terceira vez em menos de quarenta anos, dependentes da ajuda externa para sobreviver. Uma ajuda que se fará compensar a peso de ouro!
Chegamos aqui por diversificadas razões: em primeiro lugar, a qualidade das lideranças, ou a falta dela, fez com que Portugal se afundasse a ponto de se pôr em causa o equilíbrio social e a qualidade de vida dos cidadãos.
Depois, porque Portugal, como país periférico, está mais dependente, para as boas e as más noticias, da economia global. E a recente crise económica e financeira, que varreu o mundo, nos últimos dois anos, deixou marcas profundas num país com as crónicas e nunca atacadas debilidades estruturais.
Mas isso não explica tudo. Outros países periféricos conseguiram singrar a ponto das suas economias aguentarem as tempestades e os humores dos mercados financeiros. Por que não nós?
Considero que o sistema político vigente na terceira república tem sido desajustado. Não colocando em causa a existência de partidos políticos para o funcionamento da democracia, o facto de conviverem, quase paredes-meias, com a mesa do orçamento conduziu à criação de clientelas que se sucederam no poder e que, para melhor sobreviver, criaram imensas teias de interesses.
Esse tecido clientelar, e as mordomias que foi gerando, tem sido o principal cancro que conduziu o país à degradação politica, económica, financeira e social. Daí que, cada vez mais, se justifique uma reflexão sobre o que se seguirá.
Portugal vai, de novo, a eleições dentro de aproximadamente um mês. E importa perceber se valerá a pena o esforço do exercício desse direito, sabendo que o sistema continuará a arruinar o que resta do país.
Sabendo que as eleições apenas foram provocadas pela ganância da clientela que pretende suceder aos que, há seis anos, permanecem sentados ao redor do orçamento do Estado.
Sabendo que estão a ser exigidos sacrifícios aos cidadãos mais empobrecidos para que tudo fique na mesma.
Sabendo que este acto eleitoral apenas provocará a mudança das moscas deixando que tudo o resto continue sem remédio.
Sabendo, enfim, que, enquanto não se mudar o sistema politico, nada se alterará e que continuaremos a caminhar tristemente para o desterro final.
Ai ... este meu pobre país!

Carlos da Gama

Foto: Google Imagens

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Saudade do mar…










Um dia,
Pousei o olhar bem longe…
No horizonte desta vida
Corrida numa estrada sem fim!

Quis entender as rotinas
Que cansam o caminho
Que percorro dia-a-dia
Apressado … sem parar!

Quis gritar o sufoco,
Correr contra o vento,
Sentir a saudade
De um tempo feliz!

Quis ouvir o murmúrio do mar
A voz de assombro
Das vagas repetidas
Mas…tão acolhedoras!

Quis verter de ternura
A ilusão do olhar
Em momentos tão breves
Mas … que valem a vida!
Saudade do mar!
Carlos da Gama
 Foto: Google Imagens