terça-feira, 31 de maio de 2011

Memória viva …


Já lá vão alguns longos anos que o Tio Quico nos deixou. Partiu, como viveu: de mansinho, sem fazer alarido e com a humildade que sempre o caracterizou.
Ficou só a saudade pendurada na memória dos conviventes de afectos mais chegados.
E a imagem de um homem forte na estrutura física mas fragilizado pela chiadeira de uma bronquite crónica que lhe exigia um esforço acrescido na respiração de todos os momentos.
Mesmo assim, o prazer do tabaco acompanhou-o toda a vida!
O Tio Quico é um personagem importante nos primeiros anos da minha vida, mais concretamente, na infância, numa época em que faltava quase tudo a nível económico e social. Mas um tempo feliz!
Na altura, a sociedade não usufruía da tecnologia que os tempos modernos dispõem de sobra. A televisão não tinha, ainda, chegado à terra do meu nascimento e a radiotelefonia era um luxo só de alguns mais «abastados».
Aquele homem povoou a minha infância de sonhos, quando juntava os sobrinhos e os conduzia para brincadeiras infantis, contava-lhes histórias de encantar ou os fazia sentirem-se actores em cenas da vida do campo que, com bonomia, os incitava a teatralizar. Saudades do Tio Quico!
Lembro bem da satisfação que sentia quando o acompanhava na caça aos pássaros em que utilizava uma fisga que ele próprio manufacturava. E não esqueço a sua impressionante pontaria, qualquer que fosse a distância do alvo. O meu papel, nesse registo, era, tão só, o de colocar uma corda na cintura para poder pendurar a caça, à semelhança do que os caçadores profissionais faziam com coelhos ou perdizes. Sempre aquela corda beneficiou da excelente mira do Tio Quico!
Depois, rumávamos para uma fonte, de abundantes e cristalinas águas, para iniciar a liturgia de depenar os pássaros, de os abrir com mestria para os limpar por dentro e de os colocar, com um pouco de sal e azeite, numa folha de couve em cima dum generoso braseiro que, entretanto, a minha mãe tinha adiantado. Passados escassos minutos, saboreávamos um suculento pitéu cujo paladar perdura na minha mais viva memória da infância.
Tudo isto emprestava à vida um encanto que as novas gerações dificilmente conseguem valorizar. A ausência de televisão, por exemplo, enchia as noites e os serões de um convívio partilhado de emoções que cimentava fortemente as relações familiares.
Lembro bem de perceber, ainda de tenra idade, a animação que as novelas transmitidas pela rádio provocavam nas pessoas que se juntavam à volta de uma dessas novidades. E a satisfação como depois se comentava o enredo dos episódios ouvidos com respeitosa atenção.
Mais tarde, foram as telenovelas a juntar as pessoas em frente do pequeno ecrã da televisão com a mesma magia de descoberta. Porque, enquanto se assiste ao desenrolar de histórias, mais ou menos bem contadas, a vida esquece as rotinas do dia-a-dia e, não raras vezes, sente-se a ilusão de se fazer parte do enredo, como se aquela fosse também a nossa história de vida.
Tenho para mim que as telenovelas têm efeitos extraordinariamente benéficos para a saúde psíquica de muitos e atenua a dor de uma das principais pechas sociais da actualidade: a solidão.
Que seria da vida de grande parte dos idosos do nosso país se não fosse o entretenimento que as telenovelas proporcionam? Que sonhos de vida seriam necessários para completar de magia o espaço que uma história bem animada preenche na vida dos nossos mais velhos?
A vida, todas as vidas são feitas de encontros e desencontros. Mas o que fica é a memória do que fomos e somos nesta caminhada de ignorados destinos. E é à boleia dos afectos recebidos num tempo precioso do meu percurso que aqui deixo fragmentos da minha memória viva!

Carlos da Gama
                      Fotos: Google Imagens

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