terça-feira, 2 de novembro de 2021

Refúgio da saudade




 

Narciso visitava a «casa da mãe» amiúde. Era ali que semeava saudades e revivia memórias já bastante desbotadas. 

Era nesse cantinho de emoções que passava parte dos seus dias, pois, ali pressentia a vida num lampejo e relembrava tempos que julgou sempre intermináveis.

O destino empurrou-o, ainda menino, para a vivência de uma manhã submersa que lhe moldaria as asas do sonho. Só na juventude tardia é que o lar materno serviu de aconchego.

Do tempo de moleque restavam histórias dispersas e escassos momentos marcantes. Tinha deixado a aldeia, com tenra idade, por vários anos, sentindo-se, a partir daí, um estranho na terra que o viu nascer. O único apelo que sempre o acompanhava era o conforto dos afetos de sua mãe.

Porém, a vida tem destas coisas: de tantos herdeiros daquele torrão materno, haveria de ser o Narciso a adquirir aquela que tinha sido a zona de conforto de toda a vida dos seus progenitores.

No momento decisório veio-lhe à memória emocionada a insistência de sua mãe para que mantivesse aquele lar no seio da família.

Depois de umas obras de melhoramento, Narciso começou a dedicar mais tempo àquela moradia, deleitando-se com a paisagem de assombro que dali se avista, com o pomar que plantou e com a pequena horta onde sua companheira de vida se dedicava à modesta produção de frutos vermelhos e hortaliças comuns.

Ocasionalmente, Narciso arrebatava-se nesse refúgio de saudade. E, não raras vezes, pelo entardecer soalheiro dos dias longos, levitava por sobre a paisagem iluminada da Veiga, até à cidade grande, ouvindo os sons notívagos e divagando pelo tempo que tinha ficado lá atrás.

Era assim que se sentia mais perto do rosto terno e sereno que sempre lhe acalmou a alma nos tempos de maior inquietação. 

Tal como escreveu Clarice Lispector, «A saudade é a prova de que o passado valeu a pena».

CG



sábado, 30 de outubro de 2021

Astorga

 








Das muitas viagens rumo ao centro da Europa em que tínhamos que atravessar Espanha, Astorga ficou sempre ao lado. Desta vez, a cidade estava no roteiro de um périplo pela Galiza, Astúrias, Cantábria e parte da Província de Leão.

E foi uma agradável surpresa esta cidade milenar que, já no séc. III, assume estatuto de sede episcopal, marcando-a nos séculos posteriores.

Rivalizando com Bracara Augusta (Braga), a «Astúrica Augusta» (Astorga) é uma das mais extensas, ricas e antigas dioceses de Espanha, cuja jurisdição abrange cerca de metade da Província de Leão e parte de Ourense e Zamora.

Com uma boa parte da muralha intacta, Astorga mostra-se numa pequena elevação com vistas largas sobre o horizonte. 

O seu casco histórico é magnífico, pontificando a Catedral como ícone principal numa cidade em que a semana santa emerge como um dos principais eventos culturais, religiosos e artísticos de toda a Espanha.

O Palácio Episcopal, que sofreu um incêndio destrutivo em 1886, foi projetado pelo ícone da arquitectura mundial, António Gaudi, em estilo modernista e neogótico, é um dos monumentos mais visitados pelos turistas.



CG


domingo, 24 de outubro de 2021

Narciso

 

«É a angústia que gera a arte»

Paul Auster


















Já há uns bons tempos que vos apresento Narciso nas suas deambulações pelas memórias da vida.

É um tipo deveras singular, que incorpora um certo encanto do passado em contraponto com o persistente desassossego em relação ao futuro.

Sempre admirei este personagem franzino e de temperamento surpreendente. Admiro-lhe a temperança com que enfrenta a vida, sobretudo, nos últimos vinte anos.

Daí que continue a relatar as aventuras distantes e os portos de abrigo que foi descobrindo, amando e menosprezando.

Na senda do que profetizou Paul Auster, também Narciso necessita regressar, de quando em vez, à nostalgia do silêncio para transmitir as emoções quentes que tomam conta dele. Sobretudo, no outono da vida e das estações.

É fácil perceber esse estado de espírito, quando o recordo a caminhar, ensimesmado, pela orla da rebentação do oceano, com os pensamentos a tira-colo e o olhar fixo nos horizontes passados e futuros.

O Narciso era interiorizado até à medula e o convívio com ele não era fácil. Entediava-se com conversa fiada e, por vezes, tornava-se antipático com o seu interlocutor, principalmente, quando o assunto roçava a banalidade.

Como companheiro de jornada, foi sempre de uma cumplicidade extrema. E deixa saudades as incontáveis horas sonhadas a palrar sobre a vida, a contornar obstáculos e artimanhas dos «amigos da onça» e, mais recentemente, o tempo gasto na preparação, ao milímetro, de viagens vividas com eufórico entusiasmo.

Nos últimos anos, ocupava muito do seu tempo no estudo da ciência que mais o fascinava, a astronomia.

Percebia-se que andava confuso com o novo mundo revelado pela ciência, que faz tábua rasa das bases civilizacionais em que toda a humanidade tinha navegado ao longo dos séculos.

Mas gostava sempre de eleger para si a frase de Di Luchese:

«(...) quero morrer quando a fascinação não mais me surpreender (...)».

CG 

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A um moribundo

 



Não tenhas medo, não! Tranquilamente,

Como adormece a noite pelo Outono,

Fecha os teus olhos, simples, docemente,

Como, à tarde, uma pomba que tem sono...

A cabeça reclina levemente

E os braços deixa-os ir ao abandono,

Como tombam, arfando, ao sol poente,

As asas de uma pomba que tem sono...

O que há depois? Depois?... O azul dos céus?

Um outro mundo? O eterno nada? Deus?

Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?

- Seja o que for, será melhor que o mundo!

Tudo será melhor do que esta vida!

                                                         Florbela Espanca





sábado, 16 de outubro de 2021

Oviedo

 



Já há alguns anos que sonhava visitar Oviedo, tão só, porque um amigo de tempos recuados era dali e falava da sua cidade com entusiasmo e paixão. 

Nas inúmeras deambulações pela costa setentrional de Espanha, Oviedo ficou sempre ao lado.





Oviedo é a capital do Principado das Astúrias, conhecida pela sua qualidade de vida e pelo rico e variado património histórico, de que se destaca a Catedral de San Salvador, cuja construção foi iniciada no séc. XIII e que contém uma mistura de elementos pré-românicos, românicos, renascentistas, barrocos e góticos.

A cidade oferece inúmeros parques verdes, é polvilhada por dezenas de estátuas,, quer de celebridades da cultura, quer de personagens folclóricos e recebeu, mais de uma vez, o título de cidade mais limpa da Espanha.




Sobre a impressão que Oviedo deixa ao visitante, nada como transcrever o que sobre ela escreveu o cineasta Woody Allen, após aí receber o maior prémio concedido na Espanha, o prémio Príncipe das Astúrias, na categoria Artes: «Uma cidade deliciosa, exótica, bonita, limpa, agradável, pacífica, para pedestres. Algo como saído de um conto de fadas».



CG


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Las Médulas

 




É uma paisagem mágica e idílica aquela que nos surge quando chegamos a Las Mèdulas. A pouco mais de 20 quilómetros da cidade de Ponferrada, Província de Léon, surgem pináculos de terra vermelha e ocre que interrogam de espanto o viajante.

Uma investigação rápida ao google dá conta que aquela paisagem fantástica é o que restou de uma montanha modelada por cerca de 200 anos de exploração mineira a partir do séculos I da era cristã.



São, provavelmente, das maiores minas de ouro a céu aberto do império romano. Aí está demonstrado o génio dos romanos na península ibérica ao ensaiarem uma técnica original de captação de ouro, há mais de dois mil anos, que consistia em escavar cavidades na montanha que eram depois enchidas com água com o objetivo de criar suficiente pressão para fazer explodir a montanha.

Os restos do que ficou, após a exploração aurífera dos romanos, é uma paisagem de terra avermelhada em relevos e de floresta povoada por centenários castanheiros e carvalhos com enormes troncos de formas estranhas e retorcidas que, com o contraste da cor verde da sua folhagem e o dourado das montanhas, empresta um toque exuberante à paisagem.




Declarado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO devido à sua beleza e interesse cultural único, Las Médulas são visitadas por milhares de turistas, sobretudo nos meses da primavera e do outono.

CG




terça-feira, 5 de outubro de 2021

Monforte de Lemos

 



Monforte de Lemos é uma pequena vila onde se pensa ter nascido Inês de Castro no ano de 1325 e que fez parte da corte de D. Constança de Aragão quando esta foi a Portugal casar-se com o Infante D. Pedro, filho do Rei Afonso IV. A relação amorosa entre o Infante e Inês de Castro e a sua morte cruel transformou-se no mais famoso e trágico caso de amor da história portuguesa.
Monforte recebeu-nos com tempo morno, apesar da teimosia das nuvens em não deixar o sol brilhar em toda a plenitude. Caminhar pelo seu centro histórico é respirar uma atmosfera de tempos recuados, de pujante e bem restaurada arquitetura medieval desenhando ruas estreitas e empedradas para a vida. E foi essa a razão principal de ter sido declarada como bem cultural de interesse.





Todo o conjunto arquitetónico da Casa do Condado de Lemos é imponente e eleva-se sobre um pequeno promontório donde se avista uma paisagem deslumbrante, com a cidade dispersa a seus pés, num arco de 360 graus.
O palácio da Casa de Lemos, original do século XIII, conserva parte das muralhas originais. Também a Torre de Menagem, da mesma data, e todo o casario e monumentos que lhe estão próximos testemunham a importância que Monforte de Lemos alcançou em séculos passados. Daí avista-se o convento das Clarissas e o Colégio de Nossa Senhora da Antiga.
A cidade é banhada pelo Rio Cabe que é atravessado pela Ponte Velha, construção do século XVI, em pleno casco urbano.




CG


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Amanhece devagar ...

 

















Depois de um sono acalentado pelos murmúrios da maré-cheia, cativa dos rochedos semeados ao longo da orla norte de Vila Praia de Âncora, é salutar saltar da cama quente e sondar o tempo, ainda envolto num luar sublime, que logo transmite um sentimento misto de liberdade e magia.

Narciso adora madrugar, sempre que está junto do mar, levantando-se com o crepúsculo matutino. Gosta de sentir a fresca brisa da alvorada, admirar os pescadores de proximidade que, com as suas barcaças, pontilham o oceano com luminescências da faina piscícola e de desfrutar as características fragrâncias da maresia temperada com a fauna marginal ao oceano.

Fica encantado a olhar o constante vaivém do mar, lá mais ao fundo, e a respirar todos aqueles aromas antes de iniciar a caminhada, pelo passadiço, até Moledo do Minho. 

Faz questão de assistir ao nascimento de mais um dia neste vilarejo, aguardando o raiar do sol sentado no alto paredão fronteiro ao mar. É dali que avista a foz do Minho com a imponente Ínsua, pequena ilhota de granito com fortificação marítima, classificada como monumento nacional e que continua a sua missão de vigilância e proteção da barra do rio.











No regresso, cruza-se com caminheiros apressados, quase todos de semblante sonolento e cabelos desordenados. 

Outros andarilhos. de marcha mais tranquila, carregam mochilas que denunciam a demanda a Santiago de Compostela. Parece que todos estão compenetrados na missão de festejar a vida com aquele exercício matinal.

Durante o percurso, Narciso sente a liberdade aumentada, deleita-se com as ventanias soltas e rebeldes, frui de um recolhimento morno e fagueiro e descansa o olhar nas paisagens azuis a perder de vista.

É aí que mais sente saudades do futuro, sobretudo quando a maresia lhe entra pela alma dentro prenhe de odores mágicos do restolho da flora, que ladeia o caminho, evocando memórias ancestrais carregadas pelos genes.

São momentos inesquecíveis, aqueles: o contacto com a natureza e o assombro do mar. 

Narciso respira os cerca de sete quilómetros com as preocupações do quotidiano ausentes do seu espírito. Porque, por ali, o dia amanhece devagar ...

CG

sábado, 21 de agosto de 2021

A essência do tempo










 


 

«O tempo é um rio formado pelos eventos, uma torrente impetuosa. Mal se avista uma coisa, já foi arrebatada e outra se lhe segue, que será carregada por sua vez.»

Marco Aurélio (imperador romano), in «Meditações»


Há um tempo para tudo, diz o povo, e com razão.

Há o tempo da inocência, primeira veste da nossa alma, que se impõe naturalmente na alvura dos nossos dias. É um momento idílico da vida caracterizado pelo crescimento, maturação e desenvolvimento psíquico. É o tempo de olhar o mundo sem sentir a sociedade, de sonhar fantasias várias e de pressentir a ternura nos gestos de quem nos protege.

Segue-se, depois, o tempo da descoberta, do olhar desassombrado e frágil para os fenómenos que giram à nossa volta. É o tempo dos ideais e valores, da afirmação da personalidade, da irreverência, da aprendizagem livresca, da afirmação do carácter e das escolhas que estruturam e condicionam o futuro.

O tempo do desencanto antecede o da frustação em que, não raras vezes, o sonho transforma-se em pesadelo. Com o passar do tempo, emergem desilusões várias, desde logo, com amigos e companheiros de jornada. Competição, intrigas, traições e cobardias desfazem quase tudo que tínhamos por adquirido.

Depois, há um tempo que mais nos deprime, o tempo do fim: o desaparecimento dos nossos afetos maiores vira do avesso a vida e, por vezes, gera o caos e a tormenta. Há os que aguentam esse tempo com audácia, os que se perdem por entre mágoas sombrias arrastando os que lhes são próximos pelas águas turbulentas da inquietação.

Esta ilusão de instantes mágicos, que é a vida, é a verdadeira essência do tempo!

CG


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Poeira no vento!

 




«I close my eyes only for a moment, and the moment's gone. All my dreams pass before my eyes, a curiosity»

Dust in the wind (Kansas)



Que bela canção e que letra tão profunda de emoção: «Dust in the wind». A nostalgia dos sons e a relevância do poema conduz-nos para bem longe do nosso deserto pacífico.

Ao dispensar atenção ao bulício do quotidiano, perpassam pensamentos de roupagem multicolor. O presente obriga-nos a olhar em frente e a abandonar o passado esmaecido do nosso destino.

Tudo o que vivemos deixa de ter valor e significado mais à frente. A natureza em flor, os sussurros do vento, as melodias das aves vagabundas, o sol claro e morno da tarde deixam de ser pontos de referência quando o tempo se esgota por entre pensamentos furtivos sobre o significado da vida. 

«All we are is dust in the wind»!

CG


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Chamamento do mar!

 














O furor esbranquiçado das águas deste oceano de sonho prenuncia um tempo de luz e magia. Nada como o sol para aconchegar e amaciar o ambiente neste final de viagem que não cumpriu o planeado.

Mas, o que menos importa é de onde se parte ou em que lugar se chega. O que mais fascina é o caminho!

Viajar é sentir o mundo à flor da pele, é partir e voltar, deslumbre e sacrifício, descoberta e paixão e, a todo o momento, novos horizontes conquistados. 

Nada se compara à emoção de ser peregrino na própria viagem, de sentir o mundo pelo olhar dos outros e desvanecer nos ventos de feição a liberdade de viver.

Após alguns dias de itinerãncia, aportamos na nossa Vila Praia de Âncora para matar saudades de um tempo recuado e carregar o sol que nos faltou nos últimos dias. É aqui que gostamos de ancorar sempre que respondemos ao chamamento do mar!









Esta terra fez-se refúgio quando o futuro ainda estava longe. É para cá que desejamos vir quando o presente deixar de ter sentido e o passado se desfizer em memória.

Um dia, numa conversa informal sobre a vida, Narciso e sua companheira de vida decidiram isso mesmo: as cinzas serão parceiras destas rochas habitadas pelo mar.

Porém, a concordância da consorte fez-se acompanhar de um sussurro de preferência pelas zonas mais firmes de mar chão, por nunca se ter compatibilizado com águas profundas. 

Narciso sorriu pelo inusitado desejo já que nessa altura nada mais importa e todos os medos dissiparam-se lá atrás. Mas, assim será!

CG


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Tui - uma cidade surpreendente!


De Paredes de Coura a Tui percorre-se cerca de trinta quilómetros, por entre montes e vales polvilhados por um casario granítico e, de onde a onde, mansões senhoriais rodeadas de vegetação abundante.

A cidade de Tui, que sobe a colina da margem direita do Rio Minho, frontal a Valença foi, em tempos remotos, sinónimo de chocolate, caramelos e outras guloseimas para os visitantes fugazes da outra margem.

Nos dias de hoje é o combustível mais em conta que seduz os portugueses raianos ou em viagens de proximidade.


A primeira impressão que Tui deixa ao visitante é a de uma cidade medieval, graças à arquitetura do edificado, quase todo em granito e de notável conservação.

É um prazer percorrer as suas ruelas e calçadas, ora mais estreitas, ora mais largas, mas sempre apresentando a peculiar traça milenar.

Percebe-se bem a razão porque a cidade foi declarada conjunto histórico-artístico espanhol, por apresentar um estilo medieval e por mérito do seu rico património arquitetónico cujo expoente maior é a catedral românica e gótica, Santa Maria de Tui.


Lá em baixo, avista-se um espelho de água longo e sereno, o Rio Minho, que parece reflexivo e consciente da sua missão de unir os dois países até desaguar em terras lusas. 

 É, sem dúvida, uma cidade surpreendente!

CG