domingo, 24 de outubro de 2021

Narciso

 

«É a angústia que gera a arte»

Paul Auster


















Já há uns bons tempos que vos apresento Narciso nas suas deambulações pelas memórias da vida.

É um tipo deveras singular, que incorpora um certo encanto do passado em contraponto com o persistente desassossego em relação ao futuro.

Sempre admirei este personagem franzino e de temperamento surpreendente. Admiro-lhe a temperança com que enfrenta a vida, sobretudo, nos últimos vinte anos.

Daí que continue a relatar as aventuras distantes e os portos de abrigo que foi descobrindo, amando e menosprezando.

Na senda do que profetizou Paul Auster, também Narciso necessita regressar, de quando em vez, à nostalgia do silêncio para transmitir as emoções quentes que tomam conta dele. Sobretudo, no outono da vida e das estações.

É fácil perceber esse estado de espírito, quando o recordo a caminhar, ensimesmado, pela orla da rebentação do oceano, com os pensamentos a tira-colo e o olhar fixo nos horizontes passados e futuros.

O Narciso era interiorizado até à medula e o convívio com ele não era fácil. Entediava-se com conversa fiada e, por vezes, tornava-se antipático com o seu interlocutor, principalmente, quando o assunto roçava a banalidade.

Como companheiro de jornada, foi sempre de uma cumplicidade extrema. E deixa saudades as incontáveis horas sonhadas a palrar sobre a vida, a contornar obstáculos e artimanhas dos «amigos da onça» e, mais recentemente, o tempo gasto na preparação, ao milímetro, de viagens vividas com eufórico entusiasmo.

Nos últimos anos, ocupava muito do seu tempo no estudo da ciência que mais o fascinava, a astronomia.

Percebia-se que andava confuso com o novo mundo revelado pela ciência, que faz tábua rasa das bases civilizacionais em que toda a humanidade tinha navegado ao longo dos séculos.

Mas gostava sempre de eleger para si a frase de Di Luchese:

«(...) quero morrer quando a fascinação não mais me surpreender (...)».

CG 

 

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