domingo, 10 de junho de 2012

Regresso ao mar!







Percebia-se inquietação no olhar. 
Já há um bom tempo que magicava ao redor dos segredos da vida, desde o nascer ao perecer. 
Achava que tinha já cumprido a missão que garantia a continuidade do genes para além da sua existência.
Por momentos, deixou que a memória lhe relembrasse alguns dos quadros mais impressivos que tinha pintado ao longo dos anos:   do nascimento, em ambiente de economia modesta, aos afetos maternos da infância;   da adolescência, meio submersa por contextos de regras e liturgias de fé, à juventude, traída por uma iníqua guerra ultramarina;   da formação universitária, que lhe abriria portas de liderança, à escolha da companheira de toda a vida;   dos rebentos, que foram emergindo dos afetos partilhados, ao agreste, mas conseguido, percurso profissional;  do acompanhamento presente na formação do cardume à descoberta do mundo com o iglô na bagageira;   do início do alargamento da família nuclear, pelas escolhas do cardume, ao (...)
Foram tantos momentos doces que iludiram a passagem do tempo!
Foto: Joana Carvalho

Até que chegou o momento de outras decisões que a natureza humana não consegue controlar. 
Ele sabe bem o quão difícil é falar, ao seu cardume, do fim dos tempos em cada ser humano.
 Mas é imprescindível que aconteça, mais cedo que tarde.
Daí que não se inibia de chamar esse assunto para o seio das conversas familiares, procurando sublinhar o inexorável ciclo da natureza.
Sem dramas, nem pieguices ou piedosas intenções, queria deixar bem claro que, após esta passagem, preferia o seu corpo purificado pelo fogo, seguido do espalhamento das cinzas pelo único lugar que lhe garante acolhedor refúgio: o mar! 
Com a certeza de que o seu espírito permanecerá desperto na estrela avistada pelo cardume em cada dia que passa.
Será, de certo, uma vigília de afectos após o merecido regresso ao mar!

Carlos da Gama

Sem comentários:

Enviar um comentário