terça-feira, 3 de agosto de 2021

O bajulador

                                                                                                                                         in Blog Caiçara



Neste tempo de chumbo por que passamos, foram muitos os festejos que ficaram adiados. Nas aldeias mais rurais deste pais, as festas e romarias sempre funcionaram como um escape de liberdade e alegria e uma brisa de descontração a insuflar a alma para fazer frente a mais um ano de trabalhos e canseiras.

Numa animada conversa, sobre este assunto, Narciso destacava de maior importância a festa da Páscoa na sua aldeia, pelo alvoroço e entusiasmo que suscitava nas pessoas e, sobretudo, nas crianças.

Lembrava-se de, ainda menino, se deleitar com a turma do «compasso pascal», tradição arreigada em terras minhotas, baseada num ritual que se traduz na visita, pelo pároco, com a ajuda de mordomos e outros auxiliares, às casas dos paroquianos, levando a cruz a anunciar o Cristo ressuscitado.

Narciso era interno dum colégio religioso, daí que o padre da aldeia sempre reclamava a sua presença nessa liturgia, dando-lhe a função de recolher num saco as esmolas oferecidas a um santo de que já não recordava o nome. 

No final do beija-cruz em cada lar, gostava de apreciar as mesas, repletas de doces, frutas, guloseimas e vinhos finos, expostas para consumo dos integrantes do grupo do compasso.

Em determinado ano, quando tinha cerca de doze-treze anos, o compasso entrou na casa de um paroquiano, que vivia do seu ofício de cesteiro, e que era um conhecido puxa-saco do «senhor abade». 

Inesperadamente, aquele anfitrião abeirou-se do pequeno Narciso, pensando que era o sobrinho do padre, o Arturinho, e iniciou todo um cerimonial de bajulação e afagos em voz suficientemente sonora para que o padre pudesse ouvir.

Narciso estava agradado com os elogios e os mimos do artesão, mas, perante a insistência em confundi-lo com o sobrinho do padre, respondeu-lhe timidamente: - Eu não sou o Arturinho!

Embasbacado, o bajulador levantou-se num ápice, perguntando: - Então de quem és tu?

Como constatou que estava perante um garoto de origem humilde, descartou-o de imediato com o semblante constrangido pelo engano e enfadado pela perda de tempo com um puto irrelevante. 

No espírito daquele imbecil acantonou-se o ciúme por Narciso, apesar dos parcos recursos da família, ser um dos poucos rapazes da aldeia que tinha escapado aos trabalhos braçais e rumado a um colégio para se dedicar aos estudos.

Narciso ficou triste e melancólico, pelo inesperado da situação, e ficou-lhe para sempre gravado na memória este obscuro episódio da sua vida. Até porque, como muito bem reza, a propósito, um ditado popular: «Fere mais a língua do adulador do que a espada do perseguidor».

CG

Sem comentários:

Enviar um comentário