quinta-feira, 22 de julho de 2021

A curva da estrada

 






Ferreira era um velho, dono de um sorriso franco e desdentado. 

Narciso, como seu vizinho mais próximo, via-o passar, dia após dia, na mesma cadência arrastada, em direção à taberna próxima da habitação para sorver o café pós-almoço. Convenceu-se de que esse ritual era a única folga de seus dias contínuos e aposentados. O resto do dia passava-o sentado no pátio de sua casa a olhar a vida a passar e a azáfama da vizinhança.

Tinha sido uma fortaleza de força, em tempos idos. Agora, os anos pesavam-lhe no corpo cansado a ponto de carecer do amparo de uma vara de eucalipto.

Contava já mais de noventa primaveras. Mas teimava em agilizar ao máximo a locomoção numa caminhada diária pelos caminhos da aldeia.

A sua característica mais notada era o olhar matreiro e curioso para tudo o que era a labuta particular dos convizinhos. Se o não fazia na hora, vinha, mais tarde, pela calada do entardecer, meter o nariz abismado nas «novidades» dos outros.

Mantinha rituais, exercitados na infância, que a modernidade destituiu de sentido: apesar de viver numa casa com os mínimos requisitos de higiene, não era raro vê-lo, pela manhã, a dirigir-se para o meio da leira, descer as calças e aliviar-se das necessidade fisiológicas que, depois, qual gato asseado, cobria de terra com a enxada de que se fazia acompanhar. Desta forma, dava expressão à lei da conservação da matéria do químico francês Antoine Lavoisier: «na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma».

Narciso gostava, por vezes, de o interpelar sobre assuntos de maior atualidade. E ele sempre correspondia com um corolário de histórias passadas, sempre repetidas à exaustão.

Transportava uma mágoa há mais de vinte anos, com a qual se tinha já conformado: a loucura precoce da sua única filha deitou por terra a promessa de uma velhice mais amparada. Mas manteve sempre por ela uma terna afeição e respeito em contraponto com a restante parentela.

Um dia, Ferreira deixou de ir tomar café. E Narciso, após visitar a sua lápide no cemitério local, recordou o que, a respeito, escreveu Fernando Pessoa, «A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto (...)».

CG




2 comentários:

  1. "Ferreira"...... Também conhecido pelo homem dos binóculos.....

    ResponderEliminar
  2. Um personagem da infância do Narciso e por quem nutria muito respeito. Era um homem de outro tempo.
    Abraço

    ResponderEliminar