sábado, 31 de julho de 2021

Até onde nos levará?

 


imagem do Satélite Astronómico Hubble 
Fonte: Portal IG




A astronomia não fazia parte das curiosidades científicas do Narciso.

Foi o seu filho, Eduardo, que um dia lhe inspirou um deslumbramento pelos astros do universo e lhe surgiu em casa com uma despretensiosa luneta para olhar o céu noturno. Na altura, Narciso ficou estupefacto com o atrevimento do Eduardo pela precoce curiosidade sobre a astronomia. quando ainda iniciava a vivência dos anos sonhadores da adolescência.

Contudo, este entusiasmo do seu rebento acabaria por despoletar nele uma saudável inquietação para as questões sobre a origem da vida e do universo. Cedo começou a presumir que a narrativa criacionista da religião cristã não poderia constituir um dogma sem qualquer possibilidade de demonstração.

Nos inícios da década de setenta, do século passado, Narciso teve um crise de fé em terras de África, quando aí prestava serviço militar na guerra da Guiné-Bissau, para a qual implorou a ajuda de um sacerdote conhecido, não tendo obtido qualquer resposta.

Nos momentos de combate no mato, quando a morte era sua vizinha nos corpos baleados e contorcidos dos camaradas mais azarados e testemunhava a miséria de todo um povo, cerceado de liberdade, acantonado às «tabancas» e sofrendo os danos colaterais de uma guerra injusta, Narciso sentia-se vazio por dentro e incrédulo em qualquer divindade.

Naqueles momentos de tragédia, questionava, por exemplo, a ausência dos capelães do exército, que sempre preferiam o «ar condicionado» de Bissau às matas e bolanhas onde os combatentes «caíam que nem tordos».

Lembra-se bem de, nas «emboscadas noturnas», quando deitado no capim pelas altas horas da noite a olhar o firmamento de África carregado de estrelas, descobrir o seu fascínio pelo cosmos. Depois, percebeu que o universo é gigantesco como o infinito, está em expansão e que o nosso planeta é um simples grão de poeira quando comparado com a grandeza do cosmos multiverso.

Impressionava-se pelo mutismo sufocante das hierarquias da igreja católica perante a evolução da ciência, facto que contribuía para reduzir, progressivamente, a sua narrativa a um efetivo malogro.

Não por acaso, desde a antiguidade clássica até aos nossos dias, a ciência tem colidido com a religião católica em diversos domínios. 

O desenvolvimento da astronomia, por exemplo, tem colocado a ridículo a interpretação literal da bíblia sobre a criação do mundo, sobretudo a partir da demonstração de que a Terra não fica no centro do universo e que orbita o sol.

A própria teoria da evolução de Charles Darwin, sobre a seleção natural, deitou por terra a teoria criacionista defendida pela religião cristã. E só em 1950 o Papa Pio XII descreveu a evolução como uma abordagem apropriada à origem do ser humano.

Ou seja, o avanço da ciência tem funcionado como um cilindro gigante que vai esmagando teorias, dogmas, interpretações, contradições e mitos tidos como verdades absolutas durante milênios. Até onde nos levará?

CG



2 comentários:

  1. Este teu "regresso" às memórias da Guiné, tem tudo a ver com o observar para as estrelas, pois "vislumbra o céu, é olhar para o passado"....

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  2. Que belo comentário! É, de facto, assim mesmo: quando olhamos o céu vemos o passado.
    És uma agradável companhia nestes passeios da memória.

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