segunda-feira, 11 de julho de 2011

Às vezes, vinham cartas…


Era sempre uma bênção dos deuses a chegada do correio a Buruntuma. Tal como em todas as zonas do interior da Guiné, não existiam estações dos correios. Apesar disso, com mais ou menos demora, sempre a correspondência chegava, muitas vezes a locais isolados, inóspitos e de muito difícil acesso.
A hierarquia das Forças Armadas Portuguesas sabia bem da enorme importância que tinha, para a moral das tropas, a troca de afectos dos militares com os seus familiares. Só quem viveu aqueles estranhos tempos pode testemunhar o alvoroço e a alegria da chegada do correio, o conforto e ajuda que todos sentíamos pelas notícias da família e dos amigos.

Fac-simile de aerograma
Um dos instrumentos de comunicação mais utilizados, nos cerca de treze anos que durou a guerra nos chamados territórios ultramarinos, foi o aerograma. Transformou-se numa autêntica instituição de comunicação na guerra colonial. Nasceu de uma ideia do Movimento Nacional Feminino, criado em 1961 com o objectivo principal de «prestar auxílio moral e material aos que lutam pela integridade do território pátrio”.
Estes papeis, autênticos guardiões de sonhos e saudade, de juras e promessas de amor, de medos e fantasmas e de muita audácia e generosidade, constituíram, para a grande maioria dos combatentes, o único elo de ligação entre zonas recônditas de África e a região mais interior de Portugal continental e insular. Colmatava vazios de alma e encurtava distâncias de afectos.

O aerograma era uma simples folha de papel de cor azul ou amarelo pálidos que, depois da escrita de saudade, era dobrado em formato de envelope e enviado sem necessitar de selo.
Era portador de histórias alegres e tristes. Lembro bem do sorriso aberto de quem recebia notícias sobre o nascimento de um filho, sobre desejos reprimidos e juras de amor eterno manifestados pelas namoradas ou sobre as melhoras de saúde de um familiar mais querido.
Mas também a tristeza invadia a alma quando a principal notícia era sobre a morte de um qualquer ente querido ou amigo, ou da sensação estranha, pretensamente nostálgica e melancólica, de saber do nascimento de um filho que, se tudo corresse de feição, só muito mais tarde haveria de conhecer.

Em Buruntuma, o correio chegava, quase sempre, de helicóptero. E era para o heliporto que corriam todos os militares logo que o ronronar dos motores, ainda longínquo, denunciava a sua aproximação.
Era uma liturgia digna de se ver quando o helicóptero pousava na pista poeirenta e das suas entranhas saía a preciosa carga, fechada a cadeado.

O silêncio nervoso que pairava no ar apenas era cortado pela voz do carteiro de serviço ao anunciar os nomes dos felizardos. Todos traziam a esperança estampada no rosto de ser um dos eleitos das notícias vindas da metrópole. E não receber uma carta ou encomenda, no dia da distribuição do correio, era uma maldade dos deuses que se manifestava num imenso desconforto e nostálgica inquietude.

Sofria-se muito quando esse momento se fazia um deserto de emoções. Era como que se o mundo se tivesse esquecido de nós. A solidão rasgava mais caminho por aquelas matas africanas.
Só quem lá viveu a saudade dos familiares mais queridos ou de uma namorada feita promessa de felicidade, é que saberá valorizar devidamente o significado que tinha o receber uma mensagem escrita num simples aerograma. Funcionava como uma injecção de morfina que fazia esquecer as agruras daquele destino colectivo. E a auto estima tomava conta de nós durante algum tempo mais.
Depois, regressava a saudade!

Carlos da Gama
                                      Fotos: Google Imagens

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