segunda-feira, 4 de julho de 2011

Mulher-monumento !



Foto: Joana Carvalho


Lá estava ela, como sempre, caminhando devagar, cada vez mais curvada pelo destino, pelo passar dos anos e, sobretudo, pela canseira de toda uma vida. Se, até há pouco tempo, se esforçava por se endireitar, hoje já não justifica qualquer vontade de o fazer.
O seu olhar continua transparente e extremamente meigo. Mas parecia pedir desculpa ao mundo por estar naquele convívio que também lhe pertencia, por direito próprio. Era a festa de baptismo do seu bisneto Tiago, filho da Martinha, como, afectuosamente, gosta de a chamar.
Sempre prefere a companhia dos filhos de maior proximidade e afectos: a Tina e o Rui. E quando tal não é possível, já nada lhe corre de feição. É a este filho que dedica o maior carinho e deposita a esperança de resolução dos problemas que vão surgindo.
Se, por razões do destino, este lhe faltasse, nem que fosse por um breve tempo, a sua vida minguaria, por certo! Porque é no Rui que suporta a sua existência e partilha as alegrias e angústias.

Virgínia é o seu nome e eu tenho muito orgulho em tê-la como sogra. O seu fantástico exemplo de vida cedo despertou em mim um grande apreço, respeito e admiração. 

Um dia, já muito distante, chamei-lhe mulher-monumento! Talvez porque, já nessa altura, a considerasse merecedora de uma distinção douradora no tempo.
O termo «sogra» tem sido fortemente diabolizado nas sociedades ocidentais. Porque, normalmente, é associado a mulher rezinga, fofoqueira, inconveniente, inoportuna, demasiado omnipresente e interessada na vida privada dos filhos.
A mãe da minha companheira é, literalmente, o contrário de tudo isto. É meiga e afável, cautelosa na abordagem da vida dos filhos, preocupada com eventuais problemas, generosa quanto baste, feliz quando visitada, apesar de nostálgica pelo tempo que passa. Ao longo de quase três décadas de ligação à família, nunca lhe ouvi qualquer trejeito ou dissimulada crítica. Antes pelo contrário: a sua bonomia e serenidade denunciam e valorizam o prazer de nos ter junto dela.

Toda a sua vida foi uma constante luta pela garantia da sobrevivência do seu núcleo de afectos. A curvatura da sua coluna vertebral testemunha uma vida de sacrifício e de trabalho rude nos campos de Gemeses. Em terra de leiras generosas, pela proximidade do rio, a vida desta mulher foi de trabalho árduo de sol-a-sol e de afectos conquistados e distribuídos com o suor do seu esforço.
Após o seu casamento, favorecido pelos ares dos campos de Gemeses, foi percebendo que o companheiro, com quem escolheu partilhar a vida, apresentava uma crescente fragilidade física que o fazia mais de casa do que do mundo. Daí o ter-se convencido que teria de assumir o papel de timoneira do destino da prole que, ao longo dos anos, ambos foram gerando.
Por vezes, fico a pensar que mistério é este que leva as pessoas a optar por uma vida de extremo labor e sacrifício para que nada falte aos seus mais queridos. Que força é esta que não se extingue, qualquer que seja o esforço ou o tempo decorrido!
Numa sociedade que, cada vez com maior ênfase, baseia os seus valores no individualismo e egoísmo, este exemplo de vida é um farol de esperança em favor da humanidade. Mas, cada vez mais me convenço que as gentes do passado exibiam uma envergadura de maior entrega e generosidade pelos outros.

A minha sogra tem 86 anos. Vive numa casa confortável, com uma das melhores vistas de Gemeses. Da varanda, de generosas paisagens, o olhar estende-se pelo imenso descampado, que muda de cor à medida que as estações do ano se sucedem. Dali avista-se o serpentear do Rio Cávado, que empresta àquele local um bucolismo de sonho. 
Também ali se respira um ar puro de maresia pois o oceano, todos os dias, entra pelo rio dentro engrossando as suas águas para cumprir o ciclo das marés.
Desde há uns anos que a Senhora Virgínia foi reduzindo a actividade campestre, na exacta proporção do aumento da idade e da fragilidade do seu corpo.
O meu desejo é que o destino acrescente muitos mais anos à vida e, fundamentalmente, conceda mais vida aos anos daquela que um dia ousei chamar, com propriedade, «Mulher-monumento»!

Carlos da Gama
                           Fotos: Carlos da Gama

1 comentário:

  1. Avó Virgínia, uma mulher de coragem e de muita força interior. O que tem a dizer... diz, não deixa para amanhã! Pôs no mundo a luz mais brilhante deste planeta.
    Mais uma vez descreves como se da minha cabeça estivesse a sair os pensamentos, que eu não consigo descrever em palavras. Parabéns!!

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