quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A seiva das nossas raízes



Naquela semana, Lisboa oferecia-se quente e gaiata. Gostava de a visitar sempre que podia. Muitas vezes, aproveitando as reuniões nos departamentos centrais do Ministério em que trabalhava. Daquela vez, frequentava um curso na área do planeamento estratégico, lá para os lados da Rua 5 de Outubro.

Para além de cerca de uma dezena de representantes de empresas portuguesas, a turma acolhia dois jovens técnicos do Governo da Guiné-Bissau. Após uma breve e animada conversa exploratória, constatei que conheciam a zona leste daquele território africano, onde eu tinha passado doze longos meses na defesa do que, na época, se acreditava ser uma província portuguesa.
Simpatizei, na primeira abordagem, com aqueles dois negros que estavam em Lisboa sob o patrocínio do Governo Holandês recebendo uma choruda bolsa mensal de cerca de oitenta contos. Estávamos em plena década de oitenta do século XX, em que um técnico superior da administração pública portuguesa pouco mais auferia que 20 contos mensais.

Num dos dias do curso, teve lugar uma visita de estudo a uma empresa da cidade. Perante a afirmação constrangida de que não traziam dinheiro, prontifiquei-me a pagar-lhes o almoço. No dia seguinte, quiseram retribuir-me a gentileza com um almoço no restaurante onde diariamente faziam as refeições e que estava sedeado no rés-do-chão do prédio onde se alojavam.
No final do repasto, fizeram questão de me levar ao apartamento de sua residência para que eu visse umas fotografias da Guiné, nomeadamente dos locais donde tinha regressado há mais de uma década.
Aceitei, de bom grado, o amistoso convite. Mas, de imediato, fiquei perplexo perante o à-vontade daqueles dois amigos em face da imensa imundície em que viviam. Deserto de qualquer organização, o apartamento estava sujo de meses, com cadeiras escondidas de vergonha por diversas peças de roupa de duvidosa higiene e com camas desalinhadas, dificilmente percebidas como locais de dormir.
Os cheiros característicos de África, que bem recordava dos tempos de guerra, deram-me a nítida sensação de que tinha entrado numa qualquer cubata do interior da Guiné-Bissau.

Procurei dissimular o choque que senti perante aquele cenário despido de quaisquer regras de higiene. A custo, e com uma mal disfarçada inquietação, solicitei de um deles um espaço para me sentar. Um sorriso aberto, feliz e com a maior naturalidade, apontou para a berma de uma das camas. E, de seguida, colocaram nas minhas mãos dezenas de fotos de locais que eu bem conhecia.
Olhei as fotografias. No entanto, um cheiro perturbador, que julguei oriundo das escadas onde deambulavam alguns drogados em fase de rescaldo, não permitiu a necessária concentração para as comentar e, muito menos, para enriquecer a conversa com o meu passado de militar naquele território.

Durante aquele curto espaço de tempo não consegui adivinhar qualquer timidez, acanhamento ou embaraço pela exposição do despretensioso estilo de vida em que viviam. Pelo contrário: os seus iluminados sorrisos e a forma simpática e envolvente como me consideravam confirmavam como natural aquela peculiar forma de vida.
Daquele episódio, retive, apesar de tudo, a saudável convivência com dois homens de boa vontade que participavam, com determinação, na reconstrução de um novo país. E acredito ter sido a forma amigável como os acolhi que os levou a convidar-me a regressar ao seu país como cooperante na área da gestão e planeamento. Convite que o projecto de vida que tinha iniciado não permitiu aceitar.

Mas foi uma experiência de vida em que pude perceber que as questões culturais e de comportamento permanecem entranhados em nós, qualquer que seja o contexto social em que nos integremos. O que aqueles dois jovens consideravam um luxo de vida era, para mim, uma autêntica imundície. Mas tratava-se, tão só, do cenário que me tinha sido revelado nas cubatas da Guiné-Bissau.
Por muito que nos esforcemos na adaptação a outras culturas e civilizações, sempre somos a seiva das nossas raízes.

                  Fotos: Google Imagens      

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