sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Teias que a marginalidade tece

Frequentava, na época, a Universidade do Porto. Não fui aluno residente. Beneficiava da simpatia de algumas amiguinhas que me disponibilizavam os «apontamentos» das aulas que não podia participar. Só dessa forma conseguia frequentar a Universidade e, em simultâneo, desenvolver uma actividade profissional.
Um dia, pelo entardecer, seguia, solitário, por uma das ruas da zona dos Clérigos. Em certo momento, deparo com três jovens adultos que, ainda distantes, caminhavam na direcção contrária à minha. Um deles, abandonando o grupo, dirigiu-se-me, de braços abertos. Parei, surpreso, enquanto sentia o abraço inusitado do inesperado cavalheiro. Fiz um esforço de memória para o procurar nas minhas andanças de vida, mas nenhum estímulo despertou qualquer sinal.
O indivíduo, com uma conversa sedutora, determinada e afirmativa, foi-me confundindo com uma catadupa de questões sobre por onde tinha deambulado a minha vida. E, de quando em vez, intervalava a conversa com a repetida questão «Então, não me conhece, pá?».
Ora, a vivência dos meus 22 anos não permitia sonegar, àquela criatura, um diálogo que permitisse estabelecer o elo de ligação que me era sugerido. Pelo que caí na armadilha de antecipar os contextos por onde se fez o meu percurso de vida, a que o meu interlocutor sempre reafirmava ter estado, também, por ali. Acreditei, assim, que tinha sido meu colega no liceu e na vida militar, daí ter-me reconhecido.

Para comemorar o «reencontro», convidou-me, logo de seguida, a tomar «um copo» numa tasca que ficava no fim da rua. A taberna, velha de décadas, estava povoada por um pequeno grupo de enrugados velhinhos que saboreavam umas «malguinhas» de tinto, acompanhado de uns cigarros baratos e catarreiros. O meu «amigo» de ocasião requereu duas malgas, imediatamente após se ter dirigido à pequena e curiosa plateia com um afectuoso: «- são servidos?».
A conversa foi-se desenrolando à volta da vida daquele auto intitulado «futebolista do Penafiel» que gostava de ajudar os amigos, quer fosse mediante a disponibilidade do seu apartamento (sempre que, por razões académicas, necessitasse de ficar no Porto!), quer com dinheiro que, «graças a Deus, tinha de sobra».

Essa pequena nuance do discurso despertou-me uma crescente curiosidade sobre aquela patética figura e, aos poucos, fui-me apercebendo de que estava perante um farsante à caça de incautos. O sinal mais forte da minha desconfiança, foi a insolente insistência em emprestar-me dinheiro e a mal disfarçada tentativa em «segurar» a minha carteira, momentos antes de a tirar do bolso para pagar a conta.

Mas todas as dúvidas se dissiparam perante a inusitada e rápida alteração do discurso, revelada pelo insólito e descarado pedido para que lhe emprestasse «quinhentos escudos».
Foi ali mesmo que desmascarei aquele velhaco, provocando olhares curiosos e atónitos por parte dos presentes. Para além de lhe reafirmar, com arrojo, que ainda não tinha conseguido divisá-lo na minha vida, berrei-lhe que a conversa palavrosa em que me tentava enrolar já me cansava e que tudo terminaria por ali.

Quer a visível irritação daquele farsante, quer a repentina memória dos seus restantes companheiros, turvou a coragem de enfrentá-lo com maior ousadia, pelo que corri, apressado, rua acima, naquele entardecer já iluminado pelas noturnas luzes da cidade.
Temi, no momento, que os três meliantes me alcançassem. Porém, rapidamente cheguei a uma praça mais movimentada, pelo que considerei que o perigo tinha passado. Respirei de alívio quando entrei no transporte de regresso a casa e repousei o pensamento na análise do sucedido.
Aquela experiência de vida despertou-me para um outro lado da sociedade e fez-me compreender melhor as razões porque tantos são apanhados nas teias que a marginalidade tece.

                  Fotos: Google Imagens      

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